segunda-feira, 25 de novembro de 2013

No capítulo anterior tratamos da conversão em geral, e também demos uma breve descrição do elemento negativo da conversão, qual seja, o arrependimento. O presente capítulo será dedicado a uma discussão do elemento positivo, que é a fé. Esta é de significação tão central na soteriologia, que requer um tratamento separado. É melhor faze-lo nesta altura, não somente porque a fé é uma parte da conversão, mas também porque ela está relacionada instrumentalmente com a justificação. Sua discussão constitui uma transição para a doutrina da justificação pela fé.
A. Termos Bíblicos Para Fé.
1. OS TERMOS DO VELHO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. O Velho Testamento não contém nenhum substantivo para fé, a não ser que emunah seja assim considerado em Hc 2.4. Esta palavra significa ordinariamente “fidelidade”, Dt 32.4; Sl 36.5; 37.3; 40.11, mas o modo pelo qual a afirmação de Habacuque é aplicada no Novo Testamento, Rm 1.17; Gl. 3.11; Hb 10.38, parece indicar que o profeta empregou o termo no sentido de fé. A palavra mais comum no Velho Testamento para “crer” é he’emin, forma hiphil de ‘amam. No qal significa “amamentar”, “cuidar de” ou “nutrir”, no niphal, “ser (ou estar) firme”, ou “estabelecido”, ou “constante”; e no hiphil, “considerar estabelecido”, “ter como verdadeiro”, ou “crer”. A palavra é usada em construções gramaticais com as preposições beth e lamedh. Com a primeira, evidentemente se refere a um confiante descanso numa pessoa ou coisa ou testemunho; com a segunda, significa o assentimento dado a um testemunho aceito como verdadeiro, – A segunda palavra em importância é batach, que se constrói com beth e quer dizer “confiar-se a”, “apoiar-se em”, “confiar”. Ela não da ênfase ao elemento intelectual do assentimento, mas, antes, ao da entrega confiante. Em distinção do he’emin, geralmente traduzida por pisteuo na septuaginta, essa palavra é geralmente traduzida por elpizo ou peithomai. O homem que confia em Deus é alguém que fixa nele toda a sua esperança quanto ao presente e ao futuro. – Há mais uma palavra, a saber, chasah, que é usada menos freqüentemente e significa “esconder-se” ou “fugir em busca de refúgio”. Também nesta é evidente que o elemento de confiança está em primeiro plano.
2. OS TERMOS DO NOVO TESTAMENTO E O SEU SIGNIFICADO. Duas palavras são empregadas em todo o Novo Testamento, a saber, pistis e o verbo cognato pisteuein. Nem sempre elas têm a mesma conotação.
a. Os diferentes sentidos de pistis. (1) No grego clássico. A palavra pistis tem dois sentidos no grego clássico. Ela indica: (a) uma convicção baseada na confiança numa pessoa e no seu testemunho, que, como tal, distingue-se do conhecimento apoiado numa investigação pessoal; e (b) a confiança propriamente dita, na qual essa convicção descansa. Esta é mais que uma simples convicção intelectual de que uma pessoa é fidedigna; pressupõe uma relação pessoal com o objeto da confiança, um sair de si mesmo para descansar noutrem. Os gregos não se utilizavam ordinariamente desta palavra neste sentido, para expressar a relação deles com os deuses, visto que os consideravam hostis aos homens e, portanto, mais como objetos de termo que de confiança. – (2) Na septuaginta. A transição do emprego da palavra pistis no grego clássico para o uso do Novo Testamento, no qual o sentido de “confiança” é da máxima importância, acha-se no uso que a septuaginta faz do verbo pisteuein, e não no do substantivo pistis, que ocorre nela apenas uma vez com um sentido um pouco parecido com o do Novo Testamento. O verbo pisteuein geralmente serve como tradução da palavra he’emin, e assim expressa a idéia de fé tanto no sentido de assentimento à Palavra de Deus, como de real confiança nele. – (3) No Novo Testamento. Há uns poucos exemplos em que a palavra tem sentido passivo, a saber, o de “fidelidade”, que é o seu significado usual no Velho Testamento, Rm 3.3; Gl 5.22, Tt 2.10. Geralmente é empregada com significação ativa. Devemos distinguir os seguintes sentidos especiais: (a) uma crença ou convicção intelectual, apoiada no testemunho de outrem, e, portanto, baseada na confiança nesta outra pessoa, e não numa investigação feita pessoalmente, Fp 1.27; 2 Co 4.13; 2 Ts 2.13, e especialmente, nos escritos de João; e (b) uma completa confiança em Deus, ou, mais particularmente, em Cristo, com vistas à redenção do pecado e à bem-aventurança futura. Assim se vê especialmente nas epístolas de Paulo, Rm 3.22, 25; 5.1, 2; 9.30, 32; Gl 2.16; Ef 2.8; 3.12, e muitas outras passagens. Deve-se distinguir esta confiança daquela na qual a confiança intelectual mencionada no item (a) acima repousa. A ordem dos estágios sucessivos da fé é como segue: (a) confiança geral em Deus e em Cristo; (b) aceitação do seu testemunho com base nessa confiança; e (c) submissão a Cristo e confiança nele para a salvação da alma. A última é especificamente denominada fé salvadora.
b. As diferentes construções gramaticais de pisteuein e seu significado. Temos as seguintes construções: (1) Pisteuein com o dativo. Geralmente significa assentir crendo. Se o objeto é uma pessoa, a construção é empregada ordinariamente num sentido um tanto denso, fértil, incluindo a idéia profundamente religiosa de uma confiança devotada. Quando o objeto é uma coisa, usualmente é a Palavra de Deus, e quando é uma pessoa, ou é Deus ou é Cristo, Jo 4.50; 5.47; At 16.34; Rm 4.3; 2 Tm 1.12. – (2) Pisteuein seguido de Hoti. Nesta construção, a conjunção geralmente serve para introduzir aquilo em que se crê. De modo geral, esta construção é mais fraca que a anterior. Das vinte passagens em que se encontra, catorze ocorrem nos escritos de João. Num par de casos, o objeto em que se crê dificilmente se eleva à esfera religiosa, Jo 9.18; At 9.26, enquanto que nalguns dos outros casos, é decididamente de significação soteriológica, Mt 9.28; Rm 10.9; 1 Ts 4.14. – (3) Pisteuein com preposição. Aqui o sentido mais profundo da palavra, o de firme e confiante entrega, alcança os seus plenos direitos. Consideremos as seguintes construções com preposições: (a) Construção com en. Esta é a construção mais freqüente na septuaginta, embora esteja pouco menos que ausente do Novo Testamento. O único caso de que se tem certeza é Mc 1.15, onde o objeto da fé é o Evangelho. Outros possíveis exemplos são Jo 3.15; Ef 1.13, onde o objeto seria Cristo. Ao que parece, a implicação desta construção gramatical é a de uma confiança firmemente posta em seu objeto.. (b) Construção com epi e o dativo. Acha-se somente na citação de Is 28.16, que aparece em três passagens, quais sejam, Rm 9.33; 10.11; 1 Pe 2.6, e em Lc 24.25; 1 Tm 1.16. Ela expressa a idéia de uma serenidade segura e repousante, uma confiante segurança em seu objeto. (c) Construção com epi e o acusativo. É usada sete vezes no Novo Testamento. Num par de casos o objeto é Deus, quando opera na salvação da alma em Cristo; em todos os demais é Cristo. Esta construção inclui a idéia de movimento moral, de um mover-se mental em direção ao objeto. A principal idéia é a de um voltar-se com segura confiança para Jesus Cristo. (d) Construção com eis. Esta é a construção mais característica do Novo Testamento. Ocorre quarenta e nove vezes. Cerca de catorze destes exemplos são joaninos, e o restante Paulino. Exceto num caso, o objeto da fé é sempre uma pessoa, raramente Deus, e muito comumente Cristo. Esta construção tem um sentido muito denso e fértil, expressando, como expressa, “uma absoluta transferência da confiança em nós para outro, uma completa rendição pessoal a Deus”. Cf. Jo 2.11; 3.16, 18, 36; 4.39; 14.1; Rm 10.14; Gl 2.16; Fp 1.29.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. 494)

Expressões Figuradas Empregadas Para Descrever a Atividade da Fé

Há na Escritura várias expressões figuradas da atividade da fé. As seguintes são algumas das mais importantes.
1. É descrita como um olhar para Jesus, Jo 3.14, 15 (comp. Nm 21.9). è uma figura muito apropriada, porquanto abrange vários elementos da fé, especialmente quando esta se refere a um firme olhar para alguém, como na passagem indicada. Há nesta expressão um ato de percepção (elemento intelectual), uma fixação deliberada dos olhos no objeto (elemento volitivo) e uma certa satisfação que a referida concentração testifica (elemento emocional).
2. É representada também por fome e sede, comer e beber, Mt 5.6; Jo 6.50-58; 4.14. Quando os homens têm de fato fome e sede espiritualmente, sentem que algo está faltando, têm consciência do caráter indispensável daquilo que está faltando, e se esforçam para obtê-lo. Tudo isso é típico da atividade da fé. Quando comemos e bebemos, não só temos a convicção de que o alimento e a bebida necessários estão presentes, mas também a confiante expectativa de que eles nos satisfarão, juntamente como, ao apropriar-se de Cristo pela fé, temos certa medida de confiança em que Ele nos salvará.
3. Finalmente, há também as figuras do vir a Cristo e recebe-lo, Jo 5.40; 7.37 (cf. o vers. 38); 6.44, 65; 1.12. A figura do vir a Cristo retrata a fé como uma ação na qual o homem olha para longe de si e dos seus próprios méritos, para ser revestido da justiça de Jesus Cristo; e a do receber a Cristo ressalta o fato de que a fé é um órgão de apropriação.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. 494)

A Doutrina da Fé na História

1. ANTES DA REFORMA. Desde os primeiros tempos da igreja cristã, a fé sobressaia nas mentes dos lideres como a grandiosa condição da salvação. A seu lado, o arrependimento logo se tornou um tanto proeminente. Ao mesmo tempo, houve pouca reflexão, a principio, sobre a natureza da fé e apenas um ligeiro entendimento da relação da fé com as outras partes da ordo salutis. Não havia uma definição da fé, que fosse de uso comum. Conquanto houvesse a tendência de usar a palavra “fé” para denotar a aceitação da verdade com base num testemunho, nalguns casos também era empregada num sentido mais profundo, de molde a incluir a idéia de rendição pessoal à verdade recebida intelectualmente. Os alexandrinos contrastavam pistis com gnosis, e consideravam aquela primariamente como um conhecimento incipiente e imperfeito. Tertuliano salientava o fato de que a fé aceita uma coisa com base numa autoridade, e não porque fosse assegurada pela razão humana. Ele também usava o termo num sentido objetivo, como designativo daquilo que deve ser crido – a regula fidei (a regra da fé). Até ao tempo de Agostinho, pouca atenção foi dada à natureza da fé, embora esta sempre fosse reconhecida como o preeminente meio para a apropriação da salvação. Agostinho, porém, deu maior medida de consideração à matéria. Ele falava da fé em mais de um sentido. Às vezes a considerava como nada mais que o assentimento intelectual à verdade. Mas concebia a fé evangélica ou justificadora como incluindo também os elementos de rendição pessoal e amor. Esta fé é aperfeiçoada pelo amor e, assim, vem a ser o princípio das boas obras. Todavia, ele não tinha uma concepção apropriada da relação que há entre a fé e a justificação. Isto se deve em parte ao fato de que ele não distinguia cuidadosamente entre a justificação e a santificação. A concepção mais profunda de fé que se acha em Agostinho não foi compartilhada pela igreja em geral. Havia a tendência de confundir fé com ortodoxia, isto é, com a manutenção de uma fé ortodoxa. Os escolásticos distinguiam entre uma fides informis (fé informe), isto é, um simples assentimento intelectual à verdade ensinada pela igreja, e uma fides formata (charitate) – (fé formada pelo amor) – isto é, fé à qual foi dada uma forma característica pelo amor, e considerava esta última como a única fé que justifica, visto que envolve uma infusão da graça. É somente como fides formata que a fé se torna ativa para o bem e se torna a primeira das virtudes teológicas pelas quais o homem é posto na relação certa com Deus. Estritamente falando, é o amor, pelo qual a fé é aperfeiçoada, que justifica. Assim, com a fé foi feito um alicerce para o mérito humano. O homem é justificado, não exclusivamente pela imputação dos méritos de Cristo, mas também pela graça inerente. Tomaz de Aquino define a virtude da fé como um “hábito da mente, em razão do qual a vida eterna tem início em nós, considerando que ela leva o intelecto a dar o seu consentimento às coisas que se não vêem”.
2. DEPOIS DA REFORMA. Enquanto os católicos romanos davam ênfase ao fato de que a fé justificadora é simples assentimento a tem sua sede no entendimento, os Reformadores geralmente a consideravam como fidúcia (confiança), com sua sede na vontade. Contudo, sobre a importância relativa dos elementos da fé tem havido divergências, mesmo entre os protestantes. Alguns consideram a definição de Calvino superior à do Catecismo de Heidelberg. Diz Calvino: “Teremos então uma completa definição da fé se dissermos que ela é um firme e seguro conhecimento do favor de Deus para conosco, fundado na verdade de uma promessa gratuita em Cristo, e revelada às nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo”. Por outro lado, o Catecismo de Heidelberg introduz também um elemento de confiança quando responde à pergunta, “Que é a verdadeira fé?”, como segue: “A fé verdadeira não é somente um seguro conhecimento pelo qual tomo como verdade tudo que Deus nos revelou em Sua Palavra, mas também uma firme confiança que o Espírito Santo produz em meu coração pelo Evangelho, em que, não somente a outros, mas a mim também, a remissão dos pecados a justiça e a salvação, são dados gratuitamente por Deus, simplesmente pela graça, unicamente em atenção aos méritos de Cristo”. Mas, pelo contexto fica evidente que Calvino pretende incluir o elemento de confiança no “firme e seguro conhecimento” de que fala. Falando da ousadia com que podemos aproximar-nos de Deus pela oração, diz ele: “Essa ousadia brota da confiança no favor e na salvação divinos. Tanto é verdade, que o termo fé é usado muitas vezes como equivalente de confiança“. Ele rejeita absolutamente a ficção dos teólogos que insistem em “que a fé é um assentimento com que qualquer desprezador de Deus pode receber o que é dado na Escritura”. Mas há um ponto de diferença mais importante ainda entre a concepção que os Reformadores tinham da fé e a dos escolásticos. Estes reconheciam na fé mesma alguma eficácia real, e até meritória (meritum ex congruo, mérito proveniente da conformidade), ao se dispor para a justificação , procura-la e obtê-la. Por outro lado, os Reformadores eram unânimes e explícitos ao ensinarem que a fé justificadora não justifica por qualquer eficácia meritória ou inerente por si própria, mas somente como o instrumento hábil para receber ou tomar o que Deus proveu nos méritos de Cristo. Eles consideravam esta fé primariamente como dom de Deus, e só secundariamente como uma atividade do homem na dependência de Deus. Os arminianos revelaram uma tendência romanizante, quando conceberam a fé como uma obra meritória do homem, com base na qual ele é bem aceito por Deus. Schleiermacher, o pai da teologia moderna, mal menciona a fé salvadora e ignora absolutamente a fé em termos de confiança como de criança em Deus. Diz ele que a fé “nada mais é que a incipiente experiência da satisfação da nossa necessidade espiritual por Cristo”. É Uma nova experiência psicológica, uma nova tomada de consciência, arraigada numa percepção, não de Cristo, nem de alguma doutrina, mas da harmonia do Infinito, da Totalidade das coisas, na qual a alma encontra a Deus. Ritschl concordava com Schleiermacher na afirmação de que a fé surge como resultado do contato com a realidade divina, mas encontra o seu objeto, não em alguma idéia ou doutrina, nem na totalidade das coisas, mas na Pessoa de Cristo, como a suprema revelação de Deus. Não é um assentimento passivo, mas um princípio ativo. Nela o homem faz da finalidade de Deus, isto é, o reino de Deus, a sua própria finalidade, começa a trabalhar pelo reino e, ao faze-lo, acha a salvação. Os conceitos de Scheleiermacher e Ritschl caracterizam grande parte da teologia “liberal” moderna. A fé, segundo esta teologia, não é uma experiência trabalhada no céu, mas uma realização humana; não o mero recebimento de um dom, mas uma ação meritória; não a aceitação de uma doutrina, mas um ato de “fazer Cristo o Mestre”, numa tentativa de padronizar a vida segundo o exemplo de Cristo. Este conceito encontrou, porem, forte oposição na teologia da crise, que salienta o fato de que a fé salvadora jamais é apenas uma experiência psicológica natural; é, estritamente falando, um ato de Deus, e não do homem, jamais constitui uma possessão permanente do homem e é, em si mesma, um simples hohlraum (espaço vazio), completamente incapaz de efetuar a salvação. Barth e Brunner consideram a fé simplesmente como a resposta divina, produzida por Deus no homem, à Palavra de Deus em Cristo, isto é, não tanto a alguma doutrina como à ordem divina ou ao ato divino na obra da redenção. A fé é a resposta afirmativa, o “sim” ao chamamento de Deus, um “sim” extraído por Deus mesmo.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 497)

A Idéia de Fé na Bíblia

1. NO VELHO TESTAMENTO. É evidente que os escritores do Novo Testamento, ao salientarem a fé como o princípio fundamental da vida religiosa, não estavam querendo substituir as bases e abandonar o ensino do Velho Testamento. Eles consideravam Abraão como tipo de todos os crentes (Rm 4; Gl 3; Hb 11; Tg 2), e os da fé como verdadeiros filhos de Abraão (Rm 2.28, 29; 4.12, 16; Gl 3.9). A fé nunca é tratada como novidade da nova aliança, nem tampouco se traça alguma linha de distinção ente a fé das duas dispensações, Jo 5.46; 12.38, 39; Hc 2.4; Rm 1.17; 10.16; Gl 3.11; Hb 10.38. Em ambos os Testamentos a fé é a mesma entrega pessoal a Deus, sendo Este visto não meramente como o supremo bem da alma, mas como o gracioso Salvador do pecador. A única diferença notória deve-se ao caráter progressivo da obra de redenção, e isto já é mais ou menos evidente mesmo dentro dos limites do próprio Velho Testamento.
a. No período patriarcal. Nas primeiras partes do Velho Testamento há escassas declarações abstratas a respeito do método de salvação. A essência da religião dos patriarcas é-nos demonstrada pela ação. A promessa de Deus ocupa o primeiro plano e, no caso de Abraão, se destina a expor a idéia de que a resposta adequada a ela é a da fé. Toda a vida de Noé foi determinada pela confiança em Deus e em Suas promessas, mas é especialmente Abraão que é colocado diante de nós como o crente típico, que se entrega a Deus com inabalável confiança em Suas promessas e é justificado pela fé.
b. No período da Lei. A dádiva da Lei não efetuou uma mudança fundamental na religião de Israel, mas apenas introduziu uma alteração em sua forma externa. A Lei não substituiu a Promessa; tampouco foi a fé suplantada pelas obras. Na verdade, muitos israelitas viam a Lei com espírito puramente legalista e procuravam basear o seu direito à salvação num escrupuloso cumprimento da lei vista como um corpo de preceitos externos. Mas, no caso dos que compreenderam a sua natureza real, que perceberam a interioridade e a espiritualidade da Lei, esta serviu para aprofundar o sentimento de pecado e para aguçar a convicção de que só da graça de Deus se podia esperar salvação. Vê-se que a essência da vida piedosa real consistia crescentemente na confiança sem reserva no Deus da salvação. Embora o Velho Testamento acentue claramente o temor do Senhor, numerosas expressões, como, esperar, confiar, buscar refúgio em Deus, olhar para Ele, por nele a confiança, por nele o coração, e unir-se a Ele, patenteiam que esse temor não é o medo covarde, mas, sim, o temor reverente e singelo, como de criança, e salientam a necessidade da amorosa entrega pessoal a Deus, que constitui a essência da fé salvadora. Mesmo no período da Lei, a fé é distintamente soteriológica, olhando para a salvação messiânica. É uma confiança no Deus da salvação, uma firme segurança em Suas promessas quanto ao futuro.
2. NO NOVO TESTAMENTO. Quando o Messias veio, cumprindo as profecias, trazendo a esperada salvação, tornou-se necessário que os veículos da revelação de Deus guiassem o povo de Deus para a pessoa do Redentor. Isto era absolutamente necessário, em vista do fato de que o cumprimento deu-se de uma forma que muitos não esperavam, e que aparentemente não correspondia à Promessa.
a. Nos Evangelhos. A exigência de fé em Jesus como o Redentor prometido e esperado, apareceu como algo característico da nova era. “Crer” significava tornar-se cristão. Esta exigência parecia criar um abismo entre a velha dispensação e a nova. O princípio desta é até descrito como a vinda da fé, Gl 3.23, 25. O que caracterizava os evangelhos é que neles Jesus está constantemente se oferecendo como objeto de fé, e isto em conexão com os mais altos interesses da alma. Mais do que os sinóticos, João dá ênfase aos aspectos mais elevados desta fé.
b. Em Atos. Em Atos dos Apóstolos requer-se fé no mesmo sentido geral. Pela pregação dos apóstolos, os homens são levados à obediência da fé em Cristo; e esta fé vem a ser o princípio normativo da nova comunidade. Diferentes tendências se desenvolveram na igreja e deram surgimento às diferentes maneiras de tratar a fé que se tornaram manifestas nos escritos neotestamentários.
c. Na Epístola de Tiago. Tiago teve que censurar a tendência judaica de conceber a fé agradável a Deus como um simples assentimento intelectual à verdade, fé que não dava o fruto apropriado. Sua idéia da fé que justifica não difere da de Paulo, mas ele ressalta o fato de que esta fé tem que se manifestar em boas obras. Se não, é fé morta e, de fato, é inexistente.
d. Nas Epístolas de Paulo. Paulo teve que contender particularmente com o legalismo inveterado do pensamento judaico. Os judeus jactavam-se da justiça da Lei. Conseqüentemente, o apóstolo teve que reivindicar o lugar da fé com o único instrumento da salvação. Ao faze-lo, naturalmente se demorava longamente em Cristo como o objeto da fé, desde que é unicamente deste objeto que fé deriva a sua eficácia. A fé justifica e salva somente porque ela se agarra a Jesus Cristo.
e. Na Epístola aos Hebreus. O escritor de Hebreus também considera Cristo como o objeto próprio da fé salvadora, e ensina que não há justiça senão pela fé, 10.38; 11.7. Mas o perigo do qual o escritor desta carta precisava proteger-se não era o de escorregar da fé para as obras, mas, antes, o de cair da fé, indo parar no desespero. Ele fala da fé como a “certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”, 11.1. Ele exorta os leitores a uma atitude de fé, que os capacitará a elevar-se do visível para o invisível, do presente para o futuro, do temporal para o eterno, e que os capacitará a serem pacientes em meio às tribulações.
f. Nas Epístolas de Pedro. Pedro também escreve a destinatários que corriam o perigo de cair no desânimo, embora não de cai de novo no judaísmo. As circunstâncias em que eles se achavam moveram-no a dar ênfase especial à relação da fé com a salvação consumada, a fim de avivar dentro dos seus corações a esperança que os sustentaria em suas presentes provações, a esperança de um glória invisível e eterna. A Segunda Epístola acentua a importância do conhecimento da fé como uma salvaguarda contra os erros dominantes.
g. Nos Escritos de João. João teve que contender com um gnosticismo incipiente, que falsamente salientava o conhecimento (gnosis) e desprezava a fé simples. Supunha-se que aquele levava consigo bem-aventurança muito maior que a propiciada por esta. Daí João estabelece como um dos seus objetivos engrandecer as bênçãos da fé. Ele insiste, não tanto na certeza e na glória da herança vindoura que a fé garante, como na plenitude do presente gozo da salvação que ela traz, a fé envolve conhecimento como uma firme convicção e torna os crentes imediatamente possuidores da nova vida e da salvação eterna. Nesse ínterim, João não negligencia ao fato de que a fé também tem alcance futuro.’
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 499)

A Fé em Geral

O vocábulo “fé” não é um termo exclusivamente religioso e teológico. É empregado muitas vezes no sentido geral e não religioso, e mesmo assim tem mais de uma conotação. Os seguintes usos do termo merecem particular atenção. Ele pode denotar:
1. FÉ COMO POUCO MAIS QUE MERA OPINIÃO. A palavra “fé” é utilizada às vezes num sentido solto e popular, para indicar uma persuasão da verdade que é mais forte que uma simples opinião e , todavia, mais fraca que o conhecimento. Mesmo Locke definiu a fé como “o assentimento da mente a proposições que são prováveis , mas não certamente, verdadeiras”. Em linguagem popular , muitas vezes dizemos algo de que não estamos absolutamente certos mas que, ao mesmo tempo, nos sentimos constrangidos a reconhecer como verdadeiro: “Creio , mas não tenho certeza”. Conseqüentemente , alguns filósofos viram a característica distintiva da fé no grau menor de certeza que ela dá (Locke , Hume , Kant, e outros).
2. FÉ COMO CERTEZA IMEDIATA. Com relação à ciência , muitas vezes se descreve a fé como certeza imediata . Há uma certeza que o homem pode obter por meio de percepção , da experiência e da dedução lógica, mas há também uma certeza intuitiva. Em toda ciência há axiomas que não podem sr demonstrados e convicções intuitivas que não são adquiridas pela percepção ou pela dedução lógica. Diz o dr. Bavinck: “He gebied der onmiddelijke zekerheid is veel grooter dan dat der demonstratieve, em deze laatste is altijd weer op de eerste gebouwd, em staat em valt met deze. Ook is deze intuitieve zekerheid niet minder maar grooter dn die, welke langs den weg van waarneming en logische demonstratie verkregen wordt”. A esfera da certeza imediata é maior que a da certeza demonstrativa. Em ambos os casos ora mencionados, a fé é considerada exclusivamente como uma atividade do intelecto.
3. FÉ COMO CONVICÇÃO BASEADA EM TESTEMUNHO E INCLUINDO CONFIANÇA. No linguajar comum a palavra “fé” é empregada muitas vezes para denotar a convicção de que o testemunho de outro é veraz, e de que o que ele promete será feito; convicção baseada unicamente em sua reconhecida veracidade e fidelidade. É realmente uma confiante aceitação do que outro diz, com base na confiança que ele inspira. E esta fé, esta convicção baseada na confiança, muitas vezes leva a uma confiança suplementar: confiança num amigo em tempo de necessidade, na capacidade que um médico tem para dar ajuda nas ocasiões de doenças, na de um piloto para guiar o navio até o porto, e assim por diante. Neste caso, a fé é mais que simples produto do intelecto. A vontade é posta em ação, e o elemento de confiança vem para o primeiro plano.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 500)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Fé no Sentido Religioso e Particularmente a Fé Salvadora

As características distintivas da fé, no sentido teológico, nem sempre são expostas do mesmo modo. Isto ficará evidente, quando considerarmos o conceito, os elementos, o objeto e a base da fé.
1. CONCEITO DE FÉ: QUATRO TIPOS DE FÉ. Como fenômeno psicológico, a fé, no sentido religioso, não difere da fé em geral. Se a fé em geral é uma persuasão da verdade fundada no testemunho de alguém em quem temos confiança e em quem descansamos, e, portanto, apóia-se numa autoridade, a fé cristã, no sentido mais abrangente, é a persuasão do homem quanto à veracidade da Escritura, com base na autoridade de Deus. Nem sempre a Bíblia fala da fé religiosa no mesmo sentido, e isto deu surgimento às seguintes distinções, na teologia.
a. Fé histórica. Pura e simples apreensão da verdade, vazia de qualquer propósito moral ou espiritual. O nome não implica que ela abrange somente fatos e eventos históricos, com a exclusão das verdades morais e espirituais; nem tampouco que se baseia no testemunho da história, pois ela pode referir-se a fatos ou eventos contemporâneos, Jo 3.2. Expressa mais a idéia de que esta fé aceita as verdades da Escritura como uma pessoa poderia aceitar um relato histórico no qual ela não está interessada pessoalmente. Esta fé pode ser resultado da tradição, da educação, da opinião pública, do discernimento da grandeza da Escritura, e doutros fatores mais, acompanhados pelas operações gerais do Espírito Santo. Pode ser muito ortodoxa e escriturística, mas não está arraigada no coração, Mt 7.26; At 26.27, 28; Tg 2.19. É uma fides humana, e não uma fides divina (fé humana, não divina).
b. Fé miraculosa. A fé miraculosa, assim chamada, é a persuasão produzida na mente de uma pessoa de que um milagre será realizado por ela ou em favor dela. Deus pode dar a uma pessoa um trabalho para fazer, que transcende os seus poderes naturais, e capacita-la para fazê-lo. Toda tentativa de realizar uma obra dessa espécie requer fé. Isso é bem patente nos casos em que o homem aparece apenas como instrumento de Deus ou como alguém que anuncia que Deus vai fazer um milagre, pois tal homem precisa ter plena confiança em que Deus não o deixará passar vergonha. Em última instância, somente Deus faz milagres, embora possa faze-lo através da instrumentalidade humana. Esta é a fé em milagres no sentido ativo, Mt 17.20; Mc 16.17, 18. Não é necessariamente acompanhada pela fé salvadora, mas pode ser. A fé em milagres também pode ser passiva, a saber, a persuasão de que Deus fará um milagre em favor de alguém. Esta também pode ser ou não acompanhada pela fé salvadora, Mt 8.10-13; Jo 11.22 (comp. Versículos 25-27); 11.40; At 14.0. Com freqüência é levantada a questão sobre se tal fé tem um lugar legítimo na vida do homem hoje. Os católicos romanos respondem afirmativamente, enquanto que os protestantes estão inclinados a dar uma resposta negativa. Eles assinalam que não há base escriturística para tal fé, mas não negam que ainda podem ocorrer milagres. Deus é inteiramente soberano neste aspecto também, e a Palavra de Deus nos induz a aguardar outro ciclo de milagres no futuro.
c. Fé temporal. Esta é a persuasão das verdades religiosas que vem acompanhada de algumas incitações da consciência e de uma agitação dos afetos, mas não tem suas raízes num coração regenerado. O nome é derivado de Mt 13. 20,21. É a chamada fé temporária porque não é permanente e não se mantém nos dias de provação e perseguição. Não significa que não pode durar a vida inteira da pessoa. É bem possível que só pereça por ocasião da morte, mas então é certo que perecerá. Às vezes esta fé é denominada fé hipócrita, mas isso não é inteiramente correto, pois ela não envolve necessariamente hipocrisia consciente. Os que possuem esta fé, usualmente acreditam que têm a fé verdadeira. Talvez pudéssemos chamar-lhe fé imaginária, aparentemente genuína, mas de caráter evanescente. Ela difere da fé histórica no interesse pessoal que mostra pela verdade e na reação dos sentimentos à verdade. Pode-se experimentar grande dificuldade na tentativa de distingui-la da verdadeira fé salvadora. Daquele que crê desse modo Cristo falou: “não tem raiz em si mesmo”, Mt 13.21. É uma fé que não brota da raiz implantada na regeneração, e, portanto, não é expressão da nova vida entalhada nas profundezas da alma do pecador regenerado. Em geral pode dizer que a fé temporal se baseia na vida emocional e busca satisfação pessoal, em vez da glória de Deus.
d. A verdadeira fé salvadora. A verdadeira fé salvadora tem sua sede no coração e suas raízes na vida regenerada. Muitas vezes se faz distinção entre o habitus e o actus da fé (entre o hábito e o ato da fé). Contudo, por trás destes acha-se a semen fidei (semente da fé). Esta fé não é primeiramente uma atividade do homem, mas uma potencialidade produzida por Deus no coração do pecador. A semente da fé é implantada no homem quando da regeneração. Alguns teólogos falam disto como habitus da fé, mas outros mais corretamente lhe chamam semen fidei. Somente depois que Deus implantou a semente da fé no coração do homem, é que ele pode exercer a fé. É isto, evidentemente, que Barth tem em mente também, quando, em seu desejo de ressaltar o fato de que a salvação é exclusivamente obra de Deus, afirma que Deus, e não o homem, é o sujeito da fé. O exercício consciente da fé forma gradativamente o habitus, e este adquire uma significação fundamental e determinante para o ulterior exercício da fé. Quando a Bíblia fala da fé, geralmente se refere à fé como uma atividade do homem, mas nascida da obra realizada pelo Espírito Santo. Pode-se definir a fé salvadora como uma certa convicção, produzida pelo Espírito Santo no coração, quanto à veracidade do Evangelho, e uma segurança (confiança) nas promessas de Deus em Cristo. Em última análise, é certo, Cristo é o objeto da fé salvadora, mas Ele nos é oferecido unicamente no Evangelho.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 502)

OS ELEMENTOS DA FÉ

Ao falarmos dos diferentes elementos da fé, não devemos perder de vista o fato de que a fé é uma atividade do homem como um todo, e não de alguma parte dele. Além disso, no exercício da fé, a alma funciona através das suas faculdades comuns, e não através de alguma faculdade especial. É um exercício da alma que tem isto em comum com todos os exercícios similares, que parece simples, e, contudo, num exame mais chegado, vê-se que é complexo e intrincado. E portanto, para se obter uma apropriada concepção da fé, é necessário distinguir entre os vários elementos que ela compreende.
a. Um elemento intelectual (notitia, conhecimento). Há um elemento de conhecimento na fé, com relação ao qual, os seguintes pontos devem ser considerados:
(1) O caráter deste conhecimento. O conhecimento que caracteriza a fé consiste de um reconhecimento positivo da verdade, em que o homem aceita como verdadeiro tudo quanto Deus diz em Sua Palavra, e especialmente o que Ele diz a respeito da profunda depravação do homem e da redenção que há em Cristo Jesus. Contrariamente a Roma, deve-se manter a posição de que este seguro conhecimento pertence à essência da fé; e em oposição a teólogos tais como Sandeman, Wardlaw, Alexander, Chalmers e outros, devemos afirmar que a aceitação intelectual da verdade não é a fé completa. De um lado, seria valorizar exageradamente o conhecimento próprio da fé, se fosse considerado como uma compreensão completa dos objetos da fé. Mas, de outro lado, seria também uma depreciação dele, se fosse considerado como um simples tomar conhecimento das coisas em que se crê, sem a convicção de que elas são verdadeiras. Alguns “liberais” modernos têm este conceito e, conseqüentemente, gostam de falar da fé como uma aventura. É um discernimento espiritual das verdades da religião cristã que acha resposta no coração do pecador.
(2) A certeza deste conhecimento. Conhecimento próprio da fé não deve ser considerado como menos certo que outras modalidades de conhecimento. O nosso Catecismo de Heidelberg nos assegura que a fé verdadeira é, entre outras coisas, “um conhecimento certo (seguro, incontestável)”. Isto se harmoniza com Hb 11.1, que fala dela como “certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”. Ela torna subjetivamente reais e certas para o crente as coisas futuras e invisíveis. O conhecimento próprio da fé é-nos mediado e comunicado pelo testemunho de Deus em Sua Palavra, e é aceito por nós como certo e confiável, com base na veracidade de Deus. A certeza deste conhecimento tem sua garantia em Deus mesmo e, conseqüentemente, nada pode ser mais certo. E é absolutamente essencial que seja assim, pois a fé tem que ver coisas espirituais e eternas, em que a fé é necessária, mais que em qualquer outra circunstância. É preciso haver certeza quanto à realidade do objeto da fé; se não houver, a fé será vã. Machen deplora o fato de que muitos não enxergam este fato nos dias atuais. Diz ele: “O problema todo é que a fé está sendo considerada como uma benéfica qualidade da alma, sem se levar em conta a realidade ou irrealidade do seu objeto; e no momento em que se passa a considerar a fé nestes termos, nesse momento ela é destruída”.

(3) A medida deste conhecimento. É impossível determinar com precisão quanto conhecimento se requer absolutamente na fé salvadora. Se a fé salvadora é a aceitação de Cristo como Ele é oferecido no Evangelho, naturalmente surge a questão: Quanto do Evangelho o homem precisa conhecer para ser salvo? Ou, colocadas nas palavras do dr. Machen : “Quais são, para dizê-lo em termos rústicos, as exigências doutrinárias mínimas para que um homem possa ser cristão?” Em geral se pode dizer que deve ser suficiente dar ao crente alguma idéia sobre o objeto da fé. A verdadeira fé salvadora deve conter pelo menos algum conhecimento, não tanto da revelação de Deus, como do Mediador e das operações da Sua graça. Quanto maior conhecimento real a pessoa tiver das verdades da redenção, mais rica e mais completa será a sua fé, se todas as outras circunstâncias forem iguais. Naturalmente, aquele que aceita Cristo pela verdadeira fé, estará igualmente pronto para aceitar o testemunho completo de Deus, e o desejará. É da máxima importância, principalmente em nossos dias, que as igrejas vejam que os seus membros tenham uma boa compreensão da verdade, e não apenas um entendimento nebuloso dela. Particularmente nesta era antidogmática, elas deveriam ser muito mais diligentes do que têm sido na instrução doutrinária da sua juventude.
b. Um elemento emocional (assensus, assentimento). Barth chama a atenção para o fato de que a hora em que o homem aceita a Cristo pela fé é o momento existencial da sua vida, quando ele pára de considerar de modo desligado e desinteressado o objeto da fé, e começa a sentir vívido interesse por ele. Não é necessário adotar a peculiar elaboração que Barth faz da doutrina da fé, para admitir a verdade do que ele diz sobre este ponto. Quando alguém abraça a Cristo pela fé, tem uma profunda convicção da veracidade e da realidade do objeto da fé, sente que ele preenche uma importante necessidade da sua vida, e tem consciência de um absorvente interesse por ele – e isto é assentimento. É muito difícil distinguir este assentimento do conhecimento próprio da fé recém-descrito, porque, como vimos, exatamente a característica distintiva do conhecimento próprio da fé salvadora está em que leva consigo uma convicção da verdade e da realidade do seu objeto. Daí alguns teólogos terem mostrado certa inclinação para limitar o conhecimento característico da fé a um mero tomar conhecimento do objeto da fé; mas (1) isto contraria a experiência, pois na verdadeira fé não há conhecimento que não inclua uma sincera convicção da verdade e da realidade do seu objeto e um interesse por ele; e (2) isto tornaria o conhecimento que há na fé salvadora idêntico ao que se vê numa fé puramente histórica, sendo que a diferença entre a fé histórica e a salvadora está em parte exatamente neste ponto. Porque é tão difícil fazer uma clara distinção, alguns teólogos preferem falar de apenas dois elementos da fé salvadora, quais sejam, o conhecimento e a confiança pessoal. São estes os dois elementos mencionados no Catecismo de Heidelberg, quando afirma que a verdadeira fé “não é apenas um certo conhecimento pelo qual eu tenho como verdadeiro tudo que Deus nos revelou em Sua Palavra, mas também uma confiança sincera que o Espírito Santo produz em mim pelo Evangelho”. Provavelmente é preferível considerar o conhecimento e o assentimento simplesmente como dois aspectos do mesmo elemento da fé. Caso em que o conhecimento poderá ser considerado como a sua faceta mais passiva e receptiva, e o assentimento como a sua faceta mais ativa e transitiva.
c. Um elemento volitivo (fidúcia, confiança). Este é o elemento culminante da fé. A fé não é apenas questão de intelecto, nem de intelecto e sentimentos combinados: também é questão de vontade, determinando a direção da alma, um ato da alma que parte ao seu objeto e dele se apropria. Sem esta atividade, o objeto da fé, que o pecador reconhece como verdadeiro e real, e como inteiramente aplicável às suas necessidades presentes, permanece fora dele. E na fé salvadora é questão de vida ou morte que a pessoa se aproprie do objeto da fé. Este terceiro elemento consiste de uma confiança pessoal em Cristo como Salvador e Senhor, incluindo a rendição da alma, culpada e corrupta, a Cristo, e o recebimento e apropriação de Cristo como a fonte de perdão e da vida espiritual. Levando todos estes elementos em consideração, fica mais que evidente que a sede da fé não pode ser colocada nem no intelecto, nem nos sentimentos, nem na vontade, de modo exclusivo, mas unicamente no coração, o órgão central do ser espiritual, do qual procedem as fontes da vida. Em resposta à indagação se esta fidúcia (confiança) inclui necessariamente um elemento de segurança pessoal, pode-se dizer, em oposição aos católicos romanos e aos arminianos, que este é indubitavelmente o caso. Ela leva consigo, naturalmente, um certo sentimento de segurança e certeza, de gratidão e alegria. A fé, que em si mesma é certeza, tende a despertar na alma um senso de garantia e um sentimento de segurança. Na maioria dos casos, a princípio isto é mais implícito e mal chega a penetrar na esfera do pensamento consciente; é algo sentido vagamente, e não claramente percebido. Mas, à medida que a fé se desenvolve e que as atividades da fé aumentam, a consciência da garantia e segurança que ela traz também se avoluma. Mesmo aquilo que os teólogos geralmente chamam de “confiança que busca refúgio” (toevluchtnemend vertrouwen) comunica à alma certa medida de segurança. Isto difere completamente da posição de Barth, que salienta o fato de que, segundo ele, a fé é um ato repetido constantemente, é sempre um salto de desespero e um salto no escuro, e jamais se torna possessão permanente do homem; e que, portanto, elimina a possibilidade de qualquer segurança subjetiva da fé.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 505)

O OBJETO DA FÉ

Ao darmos uma resposta à questão quanto a qual é o objeto da verdadeira fé salvadora, teremos que falar com discriminação, desde que é possível falar desta fé em geral e num sentido especial. Existem:
a. Uma fides generalis (fé geral). Com isto se faz referência à fé salvadora no sentido mais geral da expressão. Seu objeto é o conjunto global da revelação divina contida na Palavra de Deus. Tudo que é ensinado explicitamente na Escritura ou que pode ser deduzido dela mediante boa e necessária inferência, pertence ao objeto da fé, neste sentido geral. De acordo com a igreja de Roma, cabe aos seus membros crer em tudo quanto a ecclesia docens (a igreja docente, o magistério eclesiástico) declara que faz parte da revelação de Deus, e isto inclui a tradição apostólica, assim chamada. É verdade que a “igreja que ensina” não reivindica o direito de produzir novos artigos de fé, mas reivindica, sim, o direito de determinar com autoridade o que a Bíblia ensina e o que, de acordo com a tradição, pertence aos ensinos de Cristo e Seus apóstolos. E isto propicia amplíssima latitude.
b. Uma Fidelis specialis (fé especial). É a fé salvadora no sentido mais limitado da expressão. Embora a verdadeira fé na Bíblia como a Palavra de Deus seja absolutamente necessária, esse ainda não é o fato específico de fé que justifica e, portanto, salva diretamente o pecador crente. Essa fé deve levar, e de fato leva, a uma fé mais especial. Há certas doutrinas concernentes a Cristo e à Sua obra, e certas promessas nele feitas aos pecadores, que o pecador deve receber e que devem levá-lo a pôr sua confiança em Cristo. Então o objeto da fé especial é Jesus Cristo e a promessa de salvação por intermédio dele. O ato especial de fé consiste em receber a Cristo e descansar nele como Ele é apresentado no Evangelho, Jo 3.15, 16, 18; 6.40. Estritamente falando, não é o ato de fé como tal, mas, antes, aquilo que é recebido pela fé, que justifica e, portanto, salva o pecador.
4. A BASE DA FÉ. A base última em que se firma a fé, está na veracidade e fidelidade de Deus, em conexão com as promessas do Evangelho. Mas, porque não temos conhecimento disto fora da Palavra de Deus, esta também pode ser considerada a base última da fé, e freqüentemente o é. Em distinção da anterior, porém, poderia ser denominada base próxima. O meio pelo qual reconhecemos a revelação incorporada na Escritura como a própria Palavra de Deus é, em última análise, o testemunho do Espírito Santo, 1 Jo 5.6:* “E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade”. Cf. também Rm 4.20, 21; 8.16; Ef 1.13; 1 Jo 4.13; 5.10. Os católicos romanos vêem na igreja a base última da fé; os racionalistas só a reconhecem na razão; Schleiermacher a busca na experiência cristã; e Kant, Ritschl e muitos teólogos “liberais” modernos a colocam nas necessidades morais da natureza humana.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 506)

Fé e Certeza

Surge aqui uma importante questão, a saber, se a certeza pertence à essência da fé, ou se é algo adicional, não incluído na fé. Uma vez que a expressão “certeza da fé” nem sempre é empregada no mesmo sentido, é necessário discriminar o assunto cuidadosamente. Há uma dupla certeza, a saber: (1) A certeza objetiva da fé, que é “a convicção certa e indubitável de que Cristo é tudo que Ele professa ser, e fará tudo que promete”. Geralmente se concorda que esta certeza é da essência da fé. (2) A certeza subjetiva da fé, ou segurança da graça e da salvação, que consiste num senso de garantia e de segurança, subindo, em muitos casos, às alturas de uma “segura convicção de que o crente individual teve os seus pecados perdoados e a sua alma salva”. Quanto à relação desta certeza ou segurança com a essência da fé, as opiniões diferem.
1. A Igreja Católica Romana nega, não somente que a certeza pessoal pertença à essência da fé, mas até mesmo que ela seja um actus reflexus (ato reflexo) ou fruto da fé. Ela ensina que os crentes não podem estar seguros da salvação, exceto nos raros casos em que a segurança é dada por revelação especial. Isto é um resultado natural do semipelagianismo e do sistema confessional de Roma. Os arminianos primitivos, que compartiam a posição semipelagiana de Roma, adotaram uma conceituação similar. Seu conceito foi condenado pelo Sínodo de Dort.
2. Os Reformadores reagiram contra a inaceitável posição da igreja de Roma. Em seu protesto, ocasionalmente salientavam de modo unilateral a certeza ou segurança como o elemento mais importante da fé. Às vezes falavam como se quem não tiver a certeza da salvação, a convicção positiva de que os seus pecados estão perdoados, não possui a verdadeira fé. A fidúcia da fé às vezes era descrita por eles como a segura confiança do pecador em que todos os seus pecados são perdoados por amor a Cristo. Todavia, os seus escritos evidenciam muito bem (a) que eles não queriam ensinar que esta fidúcia não inclui outros elementos, e (b) que não tinham intenção de negar que os verdadeiros filhos de Deus freqüentemente têm que enfrentar toda sorte de dúvidas e incertezas.
3. Os padrões confessionais reformados (calvinistas) variam um pouco. O Catecismo de Heidelberg ensina, também em reação à Roma, que a fidúcia da fé consiste na segurança do perdão dos pecados. Ele se coloca inteiramente no ponto de vista dos Reformadores, e concebe a certeza da salvação como pertencente à essência da fé. Os Cânones de Dort tomam a posição de que esta certeza dos eleitos não é fruto de uma revelação especial, mas decorre da fé nas promessas de Deus, do testemunho do Espírito Santo, e do exercício de uma boa consciência e da prática das boas obras, sendo desfrutada de acordo com a medida da fé. Isto implica, certamente, que, nalguma proporção, ela pertence à essência da fé. Contudo, fica estabelecido explicitamente que muitas vezes os crentes têm que lutar com dúvidas carnais, de modo que nem sempre têm percepção da segurança da fé. A Confissão de Fé Presbiteriana (de Westminster), falando da certeza e segurança da fé assevera que esta não pertence à essência da fé de um modo que o verdadeiro crente não deva esperar algum tempo por ela. Isto deu a alguns teólogos presbiterianos, ocasião para negarem que a segurança pessoal pertença à essência da fé. Não é, porem, o que a Confissão diz, e há razoes para entender que ela não tencionava ensinar isto. Na Escócia, os “homens de Marrow” deram, certamente, uma diferente interpretação da referida Confissão de Fé.
4. Depois do período confessional, houve diversos extravios desta posição.
a. Os antinomianos consideravam esta segurança como constituindo totalmente a essência da fé. Ignoravam todas as outras atividades da fé e consideravam a fé simplesmente como uma aceitação intelectual da proposição: São-te perdoados os teus pecados. O teólogo holandês De Labadie não reconhecia como membro da igreja a ninguém que não estivesse plenamente seguro da salvação.
b. Por outro lado, um nomismo pietista afirmava que a segurança não pertence ao ser da fé, propriamente dito, mas somente ao seu bem estar; e, exceto por revelação especial, isto só pode ser assegurado mediante contínua e conscienciosa introspecção. Todas as espécies de “sinais da vida espiritual” derivados, não da Bíblia, mas das vidas de cristãos aprovados, passaram a ser o padrão do auto-exame. Contudo, o resultado provou que este método não conseguiu produzir segurança, mas, antes, tendeu a levar a crescente dúvida, confusão e incerteza.
c. Os metodistas têm em vista uma conversão metódica que leva consigo imediata certeza. Eles colocam a lei diante dos homens, fazem que eles vejam a sua completa pecaminosidade e a sua terrível culpa, e os amedrontam com os terrores do Senhor. E depois de os haverem colocado assim sob a terrificante influência da lei, imediatamente lhes apresentam o pleno e gratuito Evangelho de Redenção, que meramente requer uma voluntária aceitação de Cristo como seu Salvador. Num só momento, os pecadores são transportados em ondas de emoção, da mais profunda tristeza para a mais exaltada alegria. E esta súbita mudança traz consigo uma imediata segurança da redenção. Quem crê, também está seguro de que é redimido. Todavia, não significa que também tem certeza da salvação final. Esta é uma certeza que o metodista coerente não pode alcançar, visto que ele crê na queda dos santos.
d. Entre os teólogos reformados (calvinistas) há uma diferença de opinião. Muitos presbiterianos negam que a fé propriamente dita inclua segurança; e nos círculos reformados alguns compartilham esta negação. Kuyper, Bavinck e Vos, porém, sustentam acertadamente que a verdadeira fé, que inclui confiança, traz consigo um senso de garantida segurança, que pode variar em grau. Todavia, há também uma segurança da fé que resulta da reflexão. É possível fazer da própria fé um objeto de reflexão e, assim, chegar a uma segurança subjetiva que não pertence à essência da fé. Neste caso, deduzimos daquilo que experimentamos em nossa vida pessoal a presença da obra do Espírito Santo dentro de nós; cf. 1 Jo 2.9-11; 3.9, 10, 18, 19; 4.7, 20.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 508)

O Conceito Católico Romano de Fé

Três pontos merecem a nossa atenção aqui:
1. A igreja de Roma oblitera a distinção entre a fé histórica e a fé salvadora ensinando que a fé consiste num simples assentimento às doutrinas da igreja. Esta fé é um dos sete preparativos para a justificação que se dá no batismo, e, portanto, precede a este necessariamente; mas, como uma atividade puramente intelectual, naturalmente não leva à salvação. Um homem pode ter a fé verdadeira, isto é, a fé bíblica, e, contudo, estar perdido. Até este ponto a igreja de Roma aplica o seu princípio de exteriorização também à fé.
2. este conceito retira virtualmente da fé o elemento de conhecimento. Alguém poderá ser considerado um crente verdadeiro, se tão somente estiver pronto a crer naquilo que a igreja ensina, sem saber realmente do que se trata. Tal fé é chamada fides implícita (fé implícita), em distinção da fides explicita (fé explicita), que inclui conhecimento. Com o ensino de que é suficiente acreditar no que a ecclesia docens ensina, a Igreja Católica Romana aplica o princípio do clericalismo.
3. Há ainda outro ponto que caracteriza a doutrina católica romana da fé, a saber, a distinção entre a fides informis e a fides formata. Aquela é o mero assentimento à doutrina, ao passo que a outra é uma fé que inclui o amor como um princípio formativo, e é aperfeiçoada pelo amor. Esta, segundo o romanismo, é a fé que realmente justifica.
QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Qual era o conceito de fé na Igreja Primitiva? 2. O conceito de Agostinho diferia do dos chamados pais primitivos? 3. Como surgiu a distinção entre uma fides informis e uma fides formata? 4. Como Lutero e Calvino diferiam quanto à ordem que se deve dar à fé e ao arrependimento? 5. Os luteranos e os reformados concordam quanto à ordem da fé e da regeneração? 6. Por que é importante manter a ordem certa? 7. Como surgiu a distinção entre os actus e o habitus da fé, e pro que essa distinção é importante? 8. Haverá ocasião em que a proposição, “Sou salvo”, é objeto da fé salvadora? 9. Que concepção de fé se acha em Schleiermacher e Ritschl? 10. Por que é muito próprio que a salvação dependa da fé? 11. Como o excessivo ativismo de Barth afeta a sua doutrina da fé? 12. Que quer ele dizer quando afirma que o homem nunca é crente ou cristão, mas sempre pecador? 13. Como explicar a sua negação de que a fé inclui segurança?
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. IV, p. 83-127; Kuyper, Dict. Dogm., De Salute, p. 98-131; ibid., Het Werk van den Heiligen Geest II, p. 233-297; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 82-154; Hodge, Syst. Theol. III, p. 41-113; Shedd, Dogm Theol. II, p. 531-534; Dabney, Syst. And Polem. Theol. III, p. 600-612; McPherson, Chr. Dogm., p. 388-393; Schmid, Doct. Theol. Of the Ev. Luth. Ch., p. 416-430; Valentine, Chr. Theol. II, p. 232-241; Kaftan, Dogm., p. 656-681; Litton, Introd. To Dogm. Theol., p. 282-296; Pope, Chr. Theol. II, p. 376-385; Pictet, Theol., p. 298-309; Inge, Faith and Its Psychology; Machen, What is Faith?; O’Brian, The Nature and Effects of Faith; Moehler, Symbolism or Doctrinal Differences; Bavinck, De Zekerheid des Geloofs; Berkhof, The Assurance of Faith; Wernecke, “Faith” in the New Testament; Warfield, The Biblical Doctrine of Faith (em Biblical Doctrines, VIII).
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 509)

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Justificação

A. Termos Bíblicos Para Justificação e Seus Significados.
1. O TERMO DO VELHO TESTAMENTO. O termo hebraico para “justificar” é hitsdik, que, na grande maioria dos casos, significa “declarar judicialmente que o estado de uma pessoa está na harmonia com as exigências da lei”, Êx 23.7; Dt 25.1; Pv 17.5; Is 5.23. O piel tsiddek ocasionalmente tem o mesmo significado, Jr 3.11; Ez 16.50, 51. O sentido destas palavras é, pois, estritamente forense ou legal. Desde que os católicos romanos, certos representantes da teoria da influência moral da expiação, como John Young, de Edimburgo, e Horace Buschnell, e também os unitários e os teólogos “liberais” modernos negam o significado legal do termo “justificar” e lhe atribuem o sentido moral de “tornar justo ou reto”, é importante observar cuidadosamente as considerações que podem ser induzidas a favor do significado legal. Que esta é a denotação certa vê (a) pelos termos postos em contraste com ele, como, por exemplo, “condenação”, Dt 25.1; Pv 17.15; Is 5.23; (b) pelos termos correlatos colocados em justaposição com ele e que muitas vezes implicam um processo de julgamento, Gn 18.25; Sl 143.2; (c) pelas expressões equivalentes às vezes empregadas, Gn 15.6; Sl 32.1, 2; e (d) pelo fato de que passagens como a de Pv 17.15 redundariam num sentido impossível, se a palavra significasse “tornar justo”. Sim, pois, nesta passagem, o sentido seria então: Aquele que melhora moralmente a vida dos ímpios é abominação para o Senhor. Há porém, um par de passagens em qua palavra significa mais que simplesmente “declarar justo”, quais sejam, Is 53.11 e Dn 12.3. Mas mesmo nestes casos, o sentido não é “tornar bom ou santo”, mas sim, “alterar a condição de modo que o homem possa ser considerado justo”.
2. OS TERMOS DO NOVO TESTAMENTO E O SEU EMPREGO. Temos aqui:
a. O verbo diakaioo. Este verbo significa, em geral, “declarar que uma pessoa é justa”. Ocasionalmente se refere a uma declaração pessoal de que o caráter moral da pessoa está em conformidade com a lei, Mt 12.37; Lc 7.29; Rm 3.4. Nas epístolas de Paulo, é evidente que o significado soteriológico do termo ocupa o primeiro plano. É, “declarar em termos forenses que as exigências da lei, como condição de vida, estão plenamente satisfeitas com relação a uma pessoa”, At 13.39; Rm 5.1, 9; 8.30-33; 1 Co 6.11; Gl 2.16; 3.11. No caso desta palavra, exatamente como no hitsdik, o sentido forense do termo é comprovado pelos seguintes fatos: (a) em muitos casos ela não se presta para outro sentido, Rm 3.20-28; 4.5-7; 5.1; Gl 2.16; 3.11; 5.4; (b) é posta em relação antiética com o termo “condenação” em Rm 8.33, 34; (c) expressões equivalentes e intercambiáveis veiculam uma idéia judicial ou legal, Jo 3.18; 5.24; Rm 4.6,7; 2 Co 5.19; e (d) se não tivesse este sentido, não haveria distinção entre justificação e santificação.
b. A palavra dikaios. Esta palavra, ligada ao verbo que acabamos de comentar, é peculiar em que nunca expressa o que uma coisa é em si mesma, mas sempre o que é em relação a alguma outra coisa, a algum padrão que está fora dela, ao qual ela deveria corresponder. Nesse aspecto, difere de agathos. No grego clássico, por exemplo, o termo dikaios é aplicado a um carro, a um cavalo ou a qualquer outra coisa, com o fim de indicar que a coisa referida é própria para o uso pretendido. Agathos expressa a idéia de que uma coisa corresponde em si mesma ao ideal. Na Escritura, um homem pode ser chamado dikaios quando, no juízo de Deus, a sua relação com a lei é o que deve ser, ou quando a sua vida é tal como se requer que sejam por sua relação judicial com Deus. Isto pode incluir a idéia de que ele é bom, mas somente de um certo ponto de vista, a saber, o da sua relação judicial com Deus.*
c. O substantivo dikaios, justificação. Vê-se apenas em dois lugares do Novo Testamento, a saber, Rm 4.25 e 5.18. Denota o ato de Deus pelo qual Ele declara os homens livres da culpa e aceitáveis a Ele. O estado resultante é indicado pela palavra dikaiosyne.
3. A IDÉIA DE JUSTIFICAÇÃO RESULTANTE. Nossa palavra justificação (do latim justificare, composta de justus e facere, e, portanto, significando “tornar justo”), precisamente como no termo holandês rechtvaardigmaking, está sujeita a dar a impressão de que a justificação denota uma mudança produzida no homem, o que não é o caso. No uso da palavra inglesa (justification), o perigo não é tão grande, porque o povo em geral não entende a sua derivação,** e no idioma holandês pode-se impedir o risco empregando as palavras correlatas rechtvaardigen e rechtvaardiging. “Justificar”, no sentido escriturístico da palavra, é efetuar uma relação objetiva, o estado da justiça, por uma sentença judicial. Isto pode ser feito de duas maneiras: (a) levando em conta a condição subjetiva real de uma pessoa (justificar o justo, o reto), Tg 2.21; ou (b) imputando a uma pessoa a justiça ou retidão de outra, isto é, considerando-a justa, apesar de ser interiormente injusta. Este último é o sentido usual da justificação no Novo Testamento.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 511)

A Doutrina da Justificação na História

A doutrina da justificação pela fé nem sempre foi claramente compreendida. De fato, até à época da Reforma, ela não encontrou sua expressão clássica. Consideremos resumidamente:
1. A DOUTRINA ANTES DA REFORMA. Alguns dos mais antigos pais da igreja, assim chamados, já falavam da justificação pela fé, mas é mais que evidente que não tinham um claro entendimento da justificação e da sua relação com a fé. Além disso, não distinguiam agudamente entre a regeneração e a justificação. Uma apresentação muito comum era que a regeneração tem lugar no batismo e inclui perdão dos pecados. Mesmo Agostinho não parece ter tido uma correta compreensão da justificação como ato legal, distinto do processo moral de santificação, embora seja evidente, pelo teor dos seus ensinos e também por declarações isoladas, que ele considerava a graça de Deus na redenção dos pecadores como livre (gratuita), soberana e eficaz, e de modo nenhum dependente de quaisquer méritos dos homens. Continuou-se a confundir a justificação com a santificação na Idade Média e aos poucos ela foi adquirindo um aspecto mais positivo e doutrinário. De acordo com os ensinos predominantes dos escolásticos, a justificação inclui dois elementos: os pecados do homem são perdoados, e ele é transformado em justo ou reto. Havia diferenças de opinião quanto à ordem lógica destes dois elementos, alguns invertendo a ordem recém-indicada. Isso também foi feito por Tomaz de Aquino, e o seu conceito prevaleceu na Igreja Católica Romana. A graça é infundida no homem, e, por esta graça infusa ele é tornado justo e, em parte com base nela, os seus pecados são perdoados. Isto já foi uma aproximação à daninha doutrina dos méritos humanos, que se desenvolveu gradativamente na Idade Média, em conexão com a doutrina da justificação. Recebeu crescente apoio a doutrina de que, em parte, o homem é justificado com base nas suas boas obras. A confusão da justificação com a santificação levou também a opiniões divergentes sobre outro ponto. Alguns escolásticos falavam da justificação como um ato instantâneo de Deus, enquanto outros a descreviam como um processo. Nos Cânones e Decretos do Concílio de Trento vemos o seguinte, no Capítulo XVI, Cânone IX: “Se alguém disser que somente pela fé o ímpio é justificado em termos tais que signifique que nada mais se requer para cooperar para a obtenção da graça da justificação, e que de modo nenhum é necessário que ele seja preparado e ajustado pelos impulsos da sua própria vontade: seja anátema”. E o Cânone XXIV fala de um aumento da justificação e, portanto, a concebe como um processo: “Se alguém disser que a justiça recebida não é preservada e que também não é aumentada diante de Deus por meio das boas obras, mas que ditas obras são simplesmente frutos e sinais da justificação obtida, e não uma causa do seu aumento: seja anátema”.
2. A DOUTRINA DEPOIS DA REFORMA. A doutrina da justificação foi o grande princípio material da Reforma. Com respeito à natureza da justificação, os Reformadores corrigiram o erro de confundir a justificação com a santificação, salientando o seu caráter legal e descrevendo-a como um ato da livre graça de Deus pelo qual Ele perdoa os nossos pecados e nos aceita como justos aos Seus olhos, mas não nos muda interiormente. No que interessa à base da justificação, eles rejeitaram a idéia de Roma de que ela está, ao menos em parte, na justiça inerente dos regenerados e nas obras, e a substituíram pela doutrina de que o seu fundamento se acha unicamente na justiça do Redentor a nós imputada. E com relação ao meio da justificação, eles davam ênfase ao fato de que o homem é justificado gratuitamente pela fé que recebe a Cristo e nele descansa unicamente para a salvação. Além disso, eles rejeitaram a doutrina de uma justificação progressiva, e afirmavam que ela é instantânea e completa, e não depende para a sua consumação de mais nenhuma satisfação pelo pecado. Eles se opuseram aos socinianos, que sustentavam que os pecadores obtêm perdão e aceitação da parte de Deus, por Sua misericórdia, com base em seu arrependimento e em sua reforma pessoal. Os arminianos não estão todos de acordo sobre o assunto, mas em geral se pode dizer que eles limitam o escopo da justificação de molde a incluir somente o perdão dos pecados, com base da justiça de Cristo imputada ao pecador. Este só é considerado justo com base em sua fé ou em sua vida de obediência. Os neonômios da Inglaterra concordavam em geral com eles sobre este ponto. Para Schleiermacher e Ritschl a justificação significava pouco mais que o fato de tornar-se o pecador cônscio do seu erro em pensar que Deus estava zangado com ele. E na teologia “liberal” moderna, de novo encontramos a idéia de que Deus justifica o pecador mediante o melhoramento moral da sua vida. Este conceito de justificação acha-se por exemplo, na obra de Bushnell, Vicarous Sacrifice (Sacrifício Vicário), e na de Macintosh, Theology as an Empirical Science (Teologia como uma Ciência Empírica).
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 514)

Natureza e Características da Justificação

A justificação é um ato judicial de Deus, no qual Ele declara, com base na justiça de Jesus Cristo, que todas as reivindicações da lei são satisfeitas com vistas ao pecador. Ela é singular, na obra da redenção, em que é um ato judicial de Deus, e não um ato ou processo de renovação, como é o caso da regeneração, da conversão e da santificação. Conquanto diga respeito ao pecador, não muda a sua vida interior. Não afeta a sua condição, mas, sim, o seu estado ou posição, e nesse aspecto difere de todas as outras principais partes da ordem da salvação. Ela envolve o perdão dos pecados e a restauração do pecador ao favor divino. O arminiano sustenta que ela inclui somente aquele, e não esta; mas a Bíblia ensina claramente que o fruto da justificação é muito mais que o perdão. Os que são justificados têm “paz com Deus”, segurança da salvação, Rm 5.1-10, e uma “herança entre os que são santificados”, At 26.18. Devemos observar os seguintes pontos de diferença entre a justificação e a santificação.
1. A justificação remove a culpa do pecado e restaura o pecador a todos os direitos filiais envolvidos em seu estado de filho de Deus, incluindo uma herança eterna. A santificação remove a corrupção do pecado e renova o pecador constante e crescentemente, em conformidade com a imagem de Deus.
2. A justificação dá-se fora do pecador, no tribunal de Deus, e não muda a sua vida interior, embora a sentença lhe seja dada a conhecer na vida interna do homem e gradativamente afete todo o seu ser.
3. A justificação acontece uma vez por todas. Não se repete, e não é um processo; é imediatamente completa e para sempre. Não existe isso, de mais ou menos justificação; ou o homem é plenamente justificado, ou absolutamente não é justificado. Em distinção disto, a santificação é um processo contínuo, que jamais se completa nesta existência.
4. Enquanto que a causa meritória de ambas está nos méritos de Cristo, há uma diferença na causa eficiente. Falando em termos de economia, Deus o Pai declara justo o pecador, e Deus o Espírito o santifica.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 514)

Elementos da Justificação

Distinguimos dois elementos na justificação, um negativo e o outro positivo.
1. O ELEMENTO NEGATIVO. Há primeiramente um elemento negativo na justificação, qual seja, a remissão dos pecados com base na obra expiatória de Jesus Cristo. Este elemento se baseia mais particularmente, embora não exclusivamente, na obediência passiva do Salvador. Calvino e alguns dos teólogos reformados mais antigos falam ocasionalmente como se este elemento constituísse a justificação completa. Isto se deve, em parte, à descrição veterotestamentária, na qual este lado da justificação está decisivamente no primeiro plano, Sl 32.1; Is 43.25; 44.22; Jr 31.34, e em parte à sua reação contra Roma que não faz justiça ao elemento da graça e do perdão gratuito. Contudo, em reação ao arminianismo, a teologia reformada sempre sustentou que a justificação é mais que perdão. Tanto o Velho Testamento como o Novo dão prova de que o perdão dos pecados é um elemento importante da justificação, como se vê em passagens como Rm 4.5-8; 5.18, 19; Gl 2.17.
O perdão concedido na justificação aplica-se a todos os pecados, passados, presentes e futuros, e, desse modo, envolve a remoção de toda culpa e de toda penalidade. Isto decorre do fato de que a justificação não admite repetição, e de passagens como Rm 5.21; 8.1, 32-34; Hb 10.14; Sl 103.12; Is 44.22, que nos asseguram que ninguém pode lançar nada na conta do homem justificado, que isento da condenação, e que é constituído da vida eterna. Também está implícito na resposta à pergunta n.º 60 do Catecismo de Heidelberg. Esta concepção de justificação, embora eminentemente escriturística, não está livre de dificuldade. Os crentes continuam a pecar depois de justificados, Tg 3.2; 1 Jo 1.8, e, como os exemplos bíblicos mostram claramente, muitas vezes caem em pecados graves. Daí, não admira que Barth goste de acentuar o fato de que o homem justificado continua sendo um pecador, se bem que um pecador justificado. Cristo ensinou os Seus discípulos a orar diariamente pelo perdão dos pecados, Mt 6.12, e os santos da Bíblia estão freqüentemente suplicando e obtendo perdão, Sl 32.5; 51.1-4; 130.3, 4. Conseqüentemente, não é surpreendente que alguns se sintam constrangidos a falar de uma justificação repetida. Dos dados para os quais chamamos a atenção, a igreja de Roma infere que os crentes precisam, de algum modo, expiar os pecados cometidos depois do batismo, e, daí, crê também numa justificação crescente. Por outro lado, os antinomianos, desejando honrar a ilimitada graça perdoadora de Deus, afirmam que os pecados dos crentes não são atribuídos como tais ao novo homem, mas unicamente ao velho homem, e que lhes é completamente desnecessário orar pelo perdão dos pecados. Por temor desta posição, até alguns teólogos reformados sentiam escrúpulos quanto a ensinar que os futuros pecados dos crentes também são perdoados na justificação, e falavam de uma justificação repetida, e mesmo de uma justificação diária. Contudo, a posição usual da teologia reformada (calvinista) é que, na justificação, Deus deveras remove a culpa, mas não a culpabilidade do pecado, isto é, Ele remove a justa sujeição do pecador à punição, mas não a culpabilidade inerente de quaisquer pecados que ele continue praticando. Esta permanece e, portanto, produz sempre nos crentes um sentimento de culpa, de separação de Deus, de tristeza, de arrependimento, e assim por diante. Daí, eles sentem a necessidade de confessar os seus pecados, mesmo os pecados da sua mocidade, Sl 25.7; 51.5-9. O crente que está realmente cônscio do seu pecado, sente no íntimo uma compulsão que o impele a confessa-lo e a buscar a consoladora segurança do perdão. Alem disso, tal confissão e oração não é apenas uma necessidade sentida subjetivamente, mas também uma necessidade objetiva. A justificação e, essencialmente, uma declaração acerca do pecador no tribunal de Deus, mas não é meramente isso; é também um actus transiens (ato em transição) que penetra a consciência do crente. A sentença divina de absolvição é dada a conhecer ao pecador e desperta a jubilosa consciência do crente. A sentença divina de absolvição é dada a conhecer ao pecador e desperta a jubilosa consciência do perdão dos pecados e do favor de Deus. Ora, esta consciência do perdão e de um renovado relacionamento filial muitas vezes é perturbada e obscurecida pelo pecado, e de novo é despertada e fortalecida pela confissão e oração, e por um renovado exercício da fé.
2. O ELEMENTO POSITIVO. Há também um elemento positivo na justificação, o qual se baseia mais particularmente na obediência ativa de Cristo. Naturalmente, aqueles que, como Piscator e os arminianos, negam a imputação da obediência ativa de Cristo ao pecador, com isso negam também o elemento positivo da justificação. De acordo com eles, a justificação deixa o homem sem nenhum direito à vida eterna, coloca-o simplesmente na situação de Adão antes da Queda, embora, segundo os arminianos, debaixo de uma lei diferente, a lei da obediência evangélica, e deixa a cargo do homem fazer por merecer a aceitação da parte de Deus e a vida eterna, pela fé e obediência. Mas é evidente, na Escritura, que a justificação é mais que o perdão puro e simples. A Josué, o sumo sacerdote, que, como representante de Israel, estava perante o Senhor usando vestes sujas, disse Jeová: “Eis que tenho feito que passe de ti a tua iniqüidade (elemento negativo), e te vestirei de finos trajes” (elemento positivo), Zc 3.4. Segundo At 26.18, obtemos pela fé “remissão de pecados e herança entre os que são santificados”. Romanos 5.1, 2 nos ensina que a fé nos traz não somente paz com Deus, mas também acesso a Deus e alegria na esperança da glória. E segundo Gl 4.5, Cristo nasceu sob a lei também “a fim de que recebêssemos a adoção de filhos”. Neste elemento positivo podemos distinguir duas partes:
a. A adoção de filhos. Os crentes são, antes de tudo, filhos de Deus por adoção. Isto implica, naturalmente, que eles não são filhos de Deus por natureza, como os “liberais” modernos gostariam de fazer-nos acreditar, pois ninguém iria adotar os seus próprios filhos. Esta adoção é um ato legal, pelo qual Deus coloca o pecador no estado de filho, mas não o transforma interiormente, como tampouco os pais mudam, pelo mero ato de adoção, a vida interior de um filho adotado. A mudança efetuada tem que ver com a relação em que o homem se acha com Deus. Em virtude da sua adoção, os crentes são, por assim dizer, iniciados na própria família de Deus, ficam sob a lei da obediência filial e, ao mesmo tempo, passam a ter direito a todos os privilégios da filiação. Devemos distinguir cuidadosamente a doação da filiação moral dos crentes, filiação resultante da regeneração e da santificação. Eles não são somente adotados por Deus para serem Seus filhos, mas também são nascidos de Deus. Naturalmente, as duas coisas não podem separar-se. São mencionadas juntas em Jo 1.12; Rm 8.15, 16; Gl 3.26, 27; 4.5, 6. Em Rm 8.15 é empregado o termo hyothesia (de hyios e tithenai), que significa “colocar ou posicionar como filho”, e no grego clássico é sempre empregado para denotar uma colocação objetiva na posição de filho. O versículo subseqüente contém a palavra tekna (de tikto, “gerar”), que qualifica os crentes como gerados por Deus. Em Jo 1.12 a idéia de adoção é expressa pelas palavras: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder (exousian edoken) de serem feitos filhos de Deus”. A expressão aí empregada significa “dar direito legal”. Imediatamente após, no versículo 13, o escritor fala da filiação ética, devida à regeneração. A conexão entre ambas é exposta claramente em Gl 4.5, 6...”a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E, porque vós sois filhos (por adoção), enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai”. O Espírito de Cristo nos regenera e nos santifica e nos move a dirigir-nos a Deus cheios de confiança, vendo-o como o Pai que é.
b. O direito à vida eterna. Este elemento está virtualmente incluído no anterior. Quando os pecadores são adotados para serem filhos de Deus, são revestidos de todos os direitos filiais legais e se tornam herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, Rm 8.17. Isto significa, antes de tudo, que eles se tornam herdeiros de todas as bênçãos da salvação na presente vida, sendo que a mais fundamental delas é descrita com as palavras, “o Espírito prometido”, isto é, a bênção é oferecida na forma do Espírito, Gl 3.14; e, numa frase um pouco diferente, “o Espírito de seu Filho”, Gl 4.6. E no Espírito e com Ele, recebem todos os dons de Cristo. Mas isto não é tudo; sua herança inclui também as bênçãos eternas da vida futura. A glória de que Paulo fala em Rm 8.17 vem em seguida aos sofrimentos do tempo presente. De acordo com Rm 8.23, a redenção do corpo, que ali é chamada “adoção”, também pertence à herança futura. E na ordo salutis de Rm 8.29, 30, a glorificação está ligada imediatamente à justificação. Sendo justificados pela fé, os crentes são herdeiros da vida eterna.
E. Esfera em Que Ocorre a Justificação.
A questão quanto à esfera em que ocorre em que ocorre a justificação deve ser respondida com discriminação. É costume distinguir entre uma justificação ativa e uma passiva, também denominadas objetiva e subjetiva, cada qual com a sua própria esfera.
1. JUSTIFICAÇÃO ATIVA OU OBJETIVA. Esta é a justificação no sentido mais fundamental da palavra. É básica em relação ao que se chama justificação subjetiva, e consiste numa declaração que Deus faz a respeito do pecador, declaração feita no tribunal de Deus. Não se trata de uma declaração de que Deus simplesmente absolve o pecador, sem levar em conta as reivindicações da justiça, mas, sim, de uma declaração divina de que, no caso do pecador em foco, as exigências da lei são satisfeitas. O pecador é declarado justo em vista do fato de que a justiça de Cristo lhe é imputada. Nesta transação Deus comparece, não como um Soberano absoluto que simplesmente põe de lado a lei, mas como um Juiz justo, que reconhece os méritos infinitos de Cristo como uma base suficiente para a justificação, e como um Pai misericordioso, que perdoa e aceita graciosamente o pecador. Esta justificação ativa antecede logicamente à fé e a justificação passiva. Cremos no perdão dos pecados.
2. JUSTIFICAÇÃO PASSIVA OU SUBJETIVA. A justificação passiva ou subjetiva tem lugar no coração ou na consciência do pecador. Uma justificação puramente objetiva, que não fosse dada a conhecer ao pecador, não corresponderia ao propósito colimado. A concessão de perdão a um prisioneiro não significaria nada, se as alegres novas não lhe fossem comunicadas e as portas da prisão não fossem abertas. Ale´m disso, é exatamente neste ponto, melhor do que noutro qualquer, que o pecador aprende a entender que a salvação é inteiramente de graça. Quando a Bíblia fala de justificação, normalmente se refere àquilo que é conhecido como justificação passiva. Deve-se ter em mente, porem, que as duas são inseparáveis. Uma se baseia na outra. Faz-se a distinção simplesmente para facilitar a correta compreensão do ato de justificação. Logicamente, a justificação passiva vem em seguida à fé; somos justificados pela fé.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 517)

Ocasião em que se da a Justificação

Alguns teólogos separam cronologicamente a justificação ativa e passiva. Neste caso, dizem que a justificação ativa deu-se na eternidade, ou quando da ressurreição de Cristo, ao passo que a justificação passiva realiza-se pela fé, e, portanto, assim se diz, segue-se à outra, no sentido cronológico. Consideremos sucessivamente a justificação desde a eternidade, a justificação na ressurreição de Cristo e a justificação pela fé.
1. JUSTIFICAÇÃO DESDE A ETERNIDADE. Os antinomianos afirmavam que a justificação do pecador aconteceu na eternidade ou na ressurreição de Cristo. Eles a confundiam, quer com o decreto eterno de eleição, quer com a justificação objetiva de Cristo., quando Ele ressurgiu dos mortos. Eles não distinguiam acertadamente entre o propósito divino na eternidade e sua execução no tempo, nem entre a obra de Cristo, em que Ele obteve as bênçãos da redenção, e a do Espírito Santo, na aplicação delas. Segundo esta posição, somos justificados antes de crermos, embora inconscientes disto, e a fé apenas nos transmite a declaração deste fato. Além disso, o fato de que os nossos pecados foram imputados a Cristo faz dele pessoalmente um pecador, e a imputação da Sua justiça a nós faz-nos pessoalmente justos, de modo que Deus não pode ver absolutamente nenhum pecado nos crentes. Alguns teólogos reformados também falam de uma justificação desde a eternidade, mas, ao mesmo tempo, recusam-se a subscrever a elaboração antinomiana desta doutrina. As bases sobre as quais eles acreditam numa justificação desde a eternidade merecem breve consideração.
a. Bases da doutrina da justificação desde a eternidade.
(1) A Escritura fala de uma graça ou misericórdia de Deus que é desde a eternidade, Sl 25:6; 103.17. Ora, toda graça ou misericórdia que seja desde a eternidade tem que ter como sua base judicial uma justificação que seja também desde a eternidade. Mas, em resposta a isto, pode-se dizer que existem misericórdias e bondades eterna de Deus que não são baseadas em nenhuma justificação do pecador, como, por exemplo, o Seu plano de redenção, a dádiva de Seu Filho e a voluntária função de penhor exercida por Cristo no pactum salutis.
(2) No pactum salutis a culpa dos pecados dos eleitos foi transferida para Cristo, e a justiça de Cristo lhes foi imputada. Quer dizer que o fardo do pecado foi retirado dos ombros deles e que eles foram justificados. Pois bem, não há dúvida de que houve certa imputação da justiça de Cristo ao pecador no conselho de redenção, mas nem toda imputação pode ser chamada justificação, no sentido escriturístico do termo. Devemos distinguir entre o que teve apenas um caráter ideal no conselho de Deus e aquilo que se concretiza no transcurso da historia.
(3) O pecador recebe a graça inicial da regeneração sobre a base da justiça de Cristo a ele imputada. Conseqüentemente, os méritos de Cristo têm que lhe ser imputados antes da sua regeneração. Mas apesar desta consideração levar à conclusão de que a justificação precede logicamente à regeneração, isto não prova a prioridade cronológica da justificação. O pecador não pode receber a graça da regeneração com base numa justificação existente idealmente no conselho de Deus e que conta com a certeza de que se concretizará na vida do pecador.
(4) As crianças também precisam da justificação, para serem salvos, e, todavia, é-lhes totalmente impossível experimentar a justificação pela fé. Mas, embora seja mais que certo que as crianças que ainda não atingiram a maturidade não podem ter experiência da justificação passiva, podem ser justificados ativamente no tribunal de Deus e, assim, podem ter posse daquilo que é absolutamente essencial.
(5) A justificação é um ato imanente de Deus e, como tal, só pode ser oriundo da eternidade. Não é bem correto, porém, falar da justificação como um actus immanens (ato imanente) em Deus; é, antes, um actus transiens (ato transitivo), exatamente como a criação a encarnação e outros mais. Os defensores da justificação desde a eternidade vêem o peso desta consideração e, daí, apressam-se a garantir-nos que eles não pretendem ensinar que os eleitos são justificados desde a eternidade actualiter (em termos de ação concretizada), mas unicamente na intenção de Deus, no decreto divino. Isto nos leva de volta à distinção usual entre o conselho de Deus e sua e sua execução. Se esta justificação presente na intenção de Deus nos permite falar de uma justificação desde a eternidade, então não há absolutamente nenhum motivo pelo qual não devamos falar também de uma criação desde a eternidade.
b. Objeções à doutrina da justificação desde a eternidade.
(1) A Bíblia ensina uniformemente que a justificação se dá pela fé ou é provinda da fé. Naturalmente, isto se aplica à justificação passiva ou subjetiva, que, entretanto, não pode separar-se cronologicamente da justificação ativa ou objetiva, exceto no caso das crianças. Mas, se a justificação se realiza pela fé, certamente não precede à fé, no sentido cronológico. Ora, é certo que os defensores da justificação desde a eternidade também falam da justificação pela fé. Mas, na sua descrição da matéria, isto só pode significar que, pela fé, o homem ganha consciência daquilo que Deus fez na eternidade.
(2) Em Rm 8.29, 30, onde vemos alguns dos degraus (scalae) da ordo salutis (ordem da salvação), a justificação está entre dois atos de Deus realizados no tempo, quais sejam, a vocação e a glorificação, sendo que esta começa no tempo e se completa na eternidade futura. E estes três , juntos, resultam de outros dois que são explicitamente indicados como eternos. O dr. Kuyper não tem base para dizer que Rom 8.30 se refere àquilo que aconteceu com os regenerados antes de nascerem, como até o dr. De Moor, que também acredita numa justificação desde a eternidade, mostra-se disposto a admitir.
(3) Ao ensinar-se a justificação desde a eternidade, o decreto de Deus a respeito da justificação do pecador, que é um actus immanens, é identificado com a própria justificação, que é um actus transiens. Isto só leva a confusão. O que teve lugar no pactum salutis (aliança da salvação) não pode ser identificado com o que disso resulta. Toda imputação ainda não é justificação. A justificação é um dos frutos da obra redentora de Cristo aplicada aos crentes pelo Espírito Santo. Mas o Espírito não aplicou, nem poderia aplicar, este ou qualquer outro fruto da obra de Cristo desde a eternidade.
2. JUSTIFICAÇÃO NA RESSURREIÇÃO DE CRISTO. A idéia de que, nalgum sentido da expressão, os pecadores são justificados na ressurreição de Cristo, foi apregoada por alguns arminianos, é ensinada por aqueles teólogos reformados (calvinistas) que acreditam numa justificação desde a eternidade, e também é definida por alguns outros eruditos reformados. Este conceito se funda nas seguintes base:
a. Com Sua obra expiatória, Cristo satisfez todas as exigências da lei pelo Seu povo. Na ressurreição de Cristo dentre os mortos, o Pai declarou publicamente que todas as condições da lei foram preenchidas para todos os eleitos e, com isso, eles foram justificados. Mas aqui também se requer uma distinção muito cuidadosa. Mesmo que seja verdade que houve uma justificação objetiva de Cristo e de todo o corpo de Cristo em Sua ressurreição, não se deve confundir isto com a justificação do pecador a que a Bíblia se refere. Não é verdade que, quando Cristo prestou plena satisfação ao Pai por todos os Seus, a culpa destes acabou naturalmente. O débito penal não é como uma dívida pecuniária, neste sentido. Mesmo depois de pago o resgate, a remoção da culpa pode depender de certas condições, e não ocorre como um resultado liquido e certo. No sentido escriturístico, os eleitos não são justificados enquanto não aceitam a Cristo pela fé, apropriando-se assim dos Seus méritos.
b. Em Rm 4.25 lemos que Cristo “ressuscitou por causa da (dia, causal) nossa justificação”, isto é, para efetuar a nossa justificação. Pois bem, é indubitavelmente certo que dia com o acusativo é causal nesta passagem. Ao mesmo tempo, não é necessariamente retrospectiva, mas também pode ser retrospectiva e, daí, pode significar “com vistas à nossa justificação”, o que equivale dizer: “ a fim de que pudéssemos ser justificados”. A interpretação retrospectiva entraria em conflito com o contexto imediatamente subseqüente, que mostra claramente: (1) que Paulo não está pensando na justificação objetiva de todo o corpo de Cristo, mas na justificação pessoal dos pecadores; e (2) que ele entende que isto se dá por meio da fé.
c. Em 2 Co 5.19 lemos: “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões”. Desta passagem se deduz a inferência de que a reconciliação do mundo com Cristo envolve a não imputação do pecado ao pecador. Mas esta interpretação não é correta. O que o apostolo que dizer é, evidentemente: Deus estava em Cristo reconciliando Consigo o mundo, como transparece no fato de que Ele não imputa aos homens os seus pecados, e de que Ele confiou aos Seus servos a palavra da reconciliação. Observe-se que me logizomenos (tempo presente) refere-se a algo que está indo avante constantemente. Não se pode conceber que isto faz parte da reconciliação objetiva, pois, neste caso, a clausula seguinte, “e nos confiou a palavra da reconciliação”, também teria que ser interpretada assim, o que é inteiramente impossível.
Com relação a esta matéria, pode-se dizer que podemos falar de uma justificação do corpo global de Cristo em Sua ressurreição, mas esta justificação é puramente objetiva, e não deve ser confundida com a justificação pessoal do pecador.
(Teolobia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 520)

JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

a. Relação da fé com a justificação. Diz a Escritura que somos justificados dia pisteos, ek pisteos, ou pistei (dativo), Rm 3.25, 28, 30; Gl 2.16; Fp 3.9. A preposição dia salienta o fato de que a fé é o instrumento pelo qual nos apropriamos de Cristo e Sua justiça. A preposição ek indica que a fé precede logicamente à nossa justificação pessoal, de sorte que, por assim dizer, esta tem sua origem na fé. O dativo é empregado no sentido instrumental. A Escritura nunca diz que justificados dia tem pistin, por causa da fé. Quer dizer que a fé nunca é apresentada como a base da nossa justificação. Se fosse, a fé teria que ser considerada como uma obra meritória do homem. E isto seria a introdução da doutrina da justificação pelas obras, à qual o apostolo coerente e consistentemente se opõe, Rm 3.21, 27, 28; 4.3, 4; Gl 2.16, 21; 3.11. Na verdade se nos diz que a fé que Abraão tinha lhe foi imputada para justiça, Rm 4.3, 9, 22; Gl. 3.6, mas, em vista da argumentação completa, isto certamente não pode significar que, no caso dele, a fé propriamente dita, como obra, tomou o lugar da justiça de Deus em Cristo. O apostolo não deixa lugar a dúvida quanto ao fato de que, estritamente falando, unicamente a justiça de Cristo, a nós imputada, é a base da nossa justificação. Mas a fé é tão absolutamente receptiva, na apropriação dos méritos de Cristo, que pode ser colocada figuradamente no lugar dos méritos de Cristo, que ela recebe. A “fé”, então, fica equivalendo ao conteúdo da fé, sito é, aos méritos da justiça de Cristo.
Muitas vezes se diz, porém que os ensinamentos de Tiago conflitam com os de Paulo sobre este ponto, dando claro apoio à doutrina da justificação pelas obras em Tg 2.14-26. Várias tentativas têm sido feitas para harmonizar os dois. Alguns partem do pressuposto de que tanto Paulo como Tiago falam da justificação do pecador, mas que Tiago acentua o fato de que a fé que não se manifesta em boas obras não é a fé verdadeira, e, portanto, não é a fé que justifica o pecador. Isto, sem dúvida, é certo. A diferença entre as exposições de Paulo e Tiago inquestionavelmente se deve, em parte, à natureza dos adversários que tiveram que defrontar. Paulo teve que combater os legalistas, que procuravam basear a sua justificação, ao menos em parte, nas obras da lei. Tiago, por outro lado, mediu forças com os antinomianos, que alegavam ter fé, mas cuja fé era um simples assentimento intelectual à verdade (2.19), e negavam a necessidade da prática de boas obras. Portanto, ele dá ênfase ao fato de que a fé sem obras é uma fé morta, e, conseqüentemente, não é, de modo algum, a fé que justifica. A fé que justifica é frutífera, produzindo boas obras. Mas, pode ser que se objete que isto não explica a dificuldade da toda, visto que Tiago diz explicitamente no versículo 24 que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé, e o ilustra com o exemplo de Abraão, que “foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho Isaque” (versículo 21). “Vês”, diz Tiago no vers. 22, “como a fé opera juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou”. Contudo, é mais que evidente que, neste caso, o escritor não está falando da justificação do pecador, pois o pecador Abraão fora justificado muito antes de oferecer Isaque em sacrifício (cf. Gn 15), mas sim, de uma ulterior justificação do crente Abraão. A fé verdadeira se manifestará nas boas obras, e estas darão testemunho diante dos homens da justiça (isto é, da retidão no viver) daquele que possui tal fé. A justificação do justo pelas obras confirma a justificação pela fé. Se Tiago quisesse de fato dizer, neste trecho da carta, que Abraão e Raabe foram justificados com a justificatio peccatoris (justificação do pecador) com base em suas obras, não somente estaria em conflito com Paulo, mas também ele próprio seria contraditório, pois ele afirma explicitamente que Abraão foi justificado pela fé (cf. o versículo 23).
b. Expressões teológicas empregadas para descrever a relação da fé com a justificação. Consideraremos aqui especialmente três expressões.
(1) Causa instrumental. A princípio este nome foi usado de maneira muito generalizada, mas posteriormente encontrou considerável oposição. Foi levantada a questão sobre a fé é instrumento de Deus ou do homem. E se dizia: De Deus não pode ser, desde que a fé referida não é de Deus,; tampouco pode ser do homem, pois a justificação não é um feito do homem, mas de Deus. Todavia, devemos ter em mente, (a) que, de acordo com o claro ensino da Bíblia, somos justificados pela fé, dia pisteos, e que esta preposição (dia) só pode ser entendida no sentido instrumental, Rm 3.28; Gl 3.8; (b) que a Bíblia diz explicitamente que Deus justifica o pecador pela fé, e, portanto, apresenta a fé como instrumento de Deus, Rm 3.30; e (c) que a fé também é apresentada como instrumento do homem, como o meio pelo qual ele recebe a justificação, Gl 2.16. A fé pode ser considerada como instrumento de Deus num sentido duplo. É um dom de Deus, sendo produzida no pecador para a justificação. Além disso, produzindo a fé no pecador, Deus leva a declaração do perdão ao seu coração ou à sua consciência. Mas a fé é também um instrumento do homem, pelo qual ele se apropria de Cristo e de todos os Seus preciosos dons, Rm 4.5; Gl 2.16. Esta é também a descrição da matéria que encontramos na Confissão Belga, e no catecismo de Heidelberg. Pela fé abraçamos a Cristo e ficamos em contato com Ele, que é a nossa justiça. O nome “causa instrumental” é normalmente utilizado nas confissões protestantes.* Todavia, os teólogos reformados (calvinistas) preferem evitá-lo, para proteger-se do risco de darem a impressão de que a justificação depende de algum modo da fé como obra do homem.
(2) Órgão de apropriação. Este nome expressa a idéia de que, pela fé, o pecador se apropria da justiça de Cristo e estabelece uma união consciente entre ele e Cristo. Os méritos de Cristo constituem o dikaioma, a base legal sobre a qual a declaração formal de Deus na justificação repousa. Pela fé o pecador se apropria da justiça do Mediador já imputada idealmente a ele no pactum salutis; e, com base nisto, ele agora é justificado formalmente perante Deus. A fé justificada na medida em que toma posse de Cristo. O nome “órgão de apropriação” inclui a idéia instrumental e, portanto, está em perfeita harmonia com as declarações que se acham em nossos padrões confessionais. Tem uma vantagem sobre o nome mais comum em que exclui a idéia de que a fé é, nalgum sentido, a base da justificação. Pode-se-lhe chamar de órgão de apropriação em dois sentidos: (a) É o órgão pelo qual tomamos os méritos de Cristo, deles nos apropriamos, e os aceitamos como a base meritória da nossa justificação. Como tal, ela precede logicamente à justificação. (b) É também o órgão pelo qual percebemos conscientemente a nossa justificação e passamos a ter posse da justificação subjetiva. De modo geral, este nome merece preferência, embora devamos ter em mente que, estritamente falando, a fé é o órgão pelo qual nos apropriamos da justiça de Cristo como base da nossa justificação, e não o órgão pelo qual nos apropriamos da justificação propriamente dita.
(3) Conditio sine qua non (condição indispensável). Este nome, sugerido por alguns teólogos reformados (calvinistas), não teve muito apoio. Expressa a idéia, que em si mesma é perfeitamente verdadeira, de que o homem não é justificado sem a fé, e de que a fé é uma condição indispensável para a justificação. O nome nada expressa de positivo e, ademais, está sujeito a mal-entendidos.
G. Base da Justificação.
Um dos pontos mais importantes da controvérsia entre a igreja de Roma e os Reformadores, e entre a teologia reformada (calvinista) e os arminianos, tem que ver com a base da justificação. Com respeito a isto, os Reformadores ensinavam:
1. Negativamente, que esta não pode achar-se nalguma virtude do homem, nem em suas boas obras. Deve-se também sustentar esta posição na atualidade contra Roma e contra as tendências pelagianizantes de várias igrejas. Roma ensina que o pecador é justificado com base na justiça inerente que foi infundida em seu coração e que, por sua vez, é fruto da cooperação à chamada primeira justificação; em toda justificação subseqüente, as boas obras do homem entram em consideração como a causa ou base formal da justificação. Contudo, é impossível que a justiça inerente infusa no regenerado e suas obras constituam a base da sua justificação, pois (a) esta justiça é e continua sendo durante a sua vida inteira uma justiça muito imperfeita; (b) ela própria já é fruto da justiça de Cristo e da graça de Deus; e (c) até mesmo as melhores obras praticadas pelos crentes estão contaminadas pelo pecado. Ademais, a Escritura nos ensina com muita clareza que o homem é justificado gratuitamente pela graça de Deus, Rm 3.24, e que não tem nenhuma possibilidade de ser justificado pelas obras da lei, Rm 3.28; Gl 2.16; 3.11.
2. Positivamente, que a base da justificação só se pode achar a justiça perfeita de Jesus Cristo, justiça imputada ao pecador a justificação. Isto é ensinado claramente em diversas passagens da Escritura, tais como Rm 3.24; 5.9, 19; 1 Co 1.30; 6.11; 2 Co 5.21; Fp 3.9. Na obediência passiva de Cristo, que se fez maldição por nós(Gl 3.13), vemos a base para o perdão dos pecados; e em sua obediência ativa, pela qual Ele mereceu todos os dons da graça, incluindo a vida eterna, veremos a base para a adoção de filhos, pela qual os pecadores são constituídos herdeiros da vida eterna. O arminiano vai contra a Escritura quando afirma que somos aceitos pelo favor de Deus somente com base em nossa fé ou em nossa obediência evangélica.
H. Objeções à Doutrina da Justificação.
A teologia “liberal”, com suas tendências racionalizantes, faz várias objeções à doutrina da justificação como tal, as quais merecem breve consideração.
1. Alguns, que ainda crêem na salvação pela graça, opõem-se ostensivamente à justificação no interesse do reconhecimento da graça de Deus. A justificação, dizem, é uma transação legal e, nesta qualidade, exclui a graça, enquanto que a Bíblia ensina claramente que o pecador é salvo pela graça. Facilmente se pode demonstrar, porém, que a justificação, com todos os seus antecedentes e conseqüentes, é obra da graça de Deus. O substituto concedido em lugar dos pecadores culpados, os sofrimentos e a obediência vicários de Cristo, a imputação da Sua justiça a transgressores indignos, e o fato de Deus tratar os crentes como justos – do começo ao fim, tudo é graça de Deus.
2. Às vezes a justificação é tida como um procedimento ímpio, porque declara, contrariamente aos fatos, que os pecadores são justos. Mas esta objeção não pega, porque a declaração divina não é no sentido de que estes pecadores são justos em si mesmos, mas que são revestidos da justiça perfeita de Jesus Cristo. Esta justiça acionada por Cristo é-lhes imputada gratuitamente. Mas não é a justiça subjetiva e pessoal de Cristo, e, sim, a Sua justiça vicária e pactual, que é imputada a pessoas que em si mesmas são injustas, e tudo para a glória de Deus.
3. Muitas vezes se diz que esta doutrina é eticamente subversiva, porque leva à licenciosidade. Mas não há verdade nisso, de modo nenhum, como as vidas dos próprios justificados mostram claramente. Na justificação, lançam-se os firmes alicerces de daquela união vital e espiritual com Cristo que assegura a nossa santificação. Ela realmente conduz às únicas condições nas quais podemos ser verdadeiramente santos, em princípio. O homem que é justificado recebe também o espírito da santificação, e é o único tipo de homem que pode transbordar de boas obras que glorificam a Deus.

I. Conceitos Divergentes de Justificação.
1. O CONCEITO CATÓLICO ROMANO. O conceito católico romano se confunde coma a santificação. Inclui os seguintes elementos na justificação: (a) a expulsão do pecado que há no homem; (b) a infusão positiva da graça divina; e (c) o perdão dos pecados. O pecador é preparado para a justificação pela graça preveniente, sem quaisquer méritos de sua parte. Esta graça preveniente leva o pecador a uma fides informis, à convicção de pecado, ao arrependimento, a uma segura confiança na graça de Deus em Cristo, aos princípios da nova vida, e ao desejo de ser batizado. Realmente, a justificação consiste na infusão de novas virtudes, depois de efetuada a remoção da corrupção do pecado no batismo. Depois da expulsão do pecado que nele há, segue-se necessariamente o perdão do pecado ou a remoção da culpa do pecado. E conforma o cristão avança de virtude em virtude, é capacitado a realizar obras meritórias e recebe como recompensa uma porção maior da graça e uma justificação perfeita. Pode-se perder a graça da justificação, mas também ela pode ser restaurada pelo sacramento da penitência.
2. O CONCEITO DE PISCATOR. Piscator ensinava que somente a obediência passiva de Cristo é imputada ao pecador na justificação, para o perdão dos pecados; e que a Sua obediência ativa não tem nenhuma possibilidade de lhe ser imputada, para a adoção de filhos e para uma herança eterna, porque o homem Cristo devia isto a Deus em Seu próprio benefício. Ademais, se Cristo tivesse cumprido a lei por nós, não poderíamos mais ser responsabilizados pela observância da lei. Piscator considerava a sujeição à penalidade e a guarda da lei como alternativas, uma excluindo a outra. Ele deixou aberta a porta para a consideração da obediência pessoal do pecador como único fundamento da sua esperança futura. Este conceito é muito semelhante ao dos arminianos, e segue de perto a linha da doutrina de Anselmo, na Idade Média.
3. O CONCEITO DE OSIANDER. Osiander revelou a tendência de reviver na Igreja Luterana os pontos essenciais da concepção católica romana da justificação, embora com uma diferença característica. Ele afirmava que a justificação não consiste da imputação da justiça vicária de Cristo ao pecador, mas sim, da implantação de um novo princípio de vida. Segundo ele, a justiça pela qual somos justificados é a justiça eterna de Deus o Pai, em nós infundida por Seu Filho Jesus Cristo.
4. O CONCEITO ARMINIANO. Os arminianos afirmam que Cristo não prestou estrita satisfação à justiça de Deus, mas, todavia, ofereceu uma real propiciação pelo pecado, propiciação que foi graciosamente aceita como satisfatória por Deus e por Ele posta como base para o perdão do pecado e, assim, para a justificação do pecador. Embora isto só sirva para zerar contas passadas, Deus também faz provisão para o futuro. De maneira igualmente graciosa, Ele imputa ao crente a sua fé, para justiça, a fé que inclui toda a vida religiosa do crente – sua obediência evangélica. Neste conceito, a fé não é mais o simples instrumento do elemento positivo da justificação, mas a base graciosamente admitida sobre a qual aquela repousa. Neste caso, a justificação não é um ato judicial, mas, sim um ato soberano de Deus.
5. O CONCEITO BARTIANO. Apesar de Barth falar da justificação como um ato instantâneo, todavia não a considera como um ato realizado uma vez por todas, seguido então pela santificação. Segundo ele, a justificação e a santificação vão de mãos dadas o tempo todo. Diz Pauck que, segundo Barth, a justificação não é um crescimento ou um desenvolvimento ético; ela sempre ocorre de novo, toda vez que homem chega ao ponto do completo desespero quanto às crenças e aos valores sobre os quais edificou a sua vida. Thurneysen também rejeita a idéia de que a justificação se dá uma vez por todas, qualifica-a de pietismo e afirma que ela é fatal para a doutrina da Reforma.
QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. Que significa o verbo dikaioo no grego clássico? 2. A justificação é um ato criador ou declarativo? 3. É possível pensar na justificação quanto aos pecados passados nalgum outro sentido que o de absolvição judicial? 4. Deve-se pensar na justificação exclusivamente como uma coisa objetiva e externa em relação ao homem? 5. Que se quer dizer, na teologia, com a causa formal da justificação? 6. Como os romanistas e os protestantes diferem sobre este ponto? 7. A justificação dos católicos pela fides formata é realmente uma fé, ou uma justificação pelo amor, com a aparência de fé? 8. Em que consiste a doutrina antinomiana da justificação desde a eternidade? 9. É correta ou não a distinção feita por Buchanan e Cunningham entre a justificação ativa e a passiva como sendo justificação fatual e declarativa? 10. Podemos dizer que na justificação declarativa (justificação passiva) Deus simplesmente declara que o pecador é o que é? 11. O que acontece com a doutrina da justificação em Schleiermacher, em Ritschl e na teologia “liberal” moderna?
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. IV, p. 182-245; Kuyper, Dict. Dogm., De Salute, p. 45-69; ibid., Het Werk van den Heiligen Geest II, p. 204-232; Comrie, Brief over de Rechtvaardigmaking; Hodge, Syst. Theol. III, p. 114-212; Shedd, Dogm. Theol. II, p. 538-552; Dick, Theology, Lectures LXXI-LXXIII; Dabney, Syst. And Polem. Theol., p. 618-650; Mastricht, Godgeleerdheit VI. 6 e 7; Buchanan, The Doctrine of Justification; Owen, On Justificatiom; Litton, Introd. To Dogm. Theol., p. 259-313; Girardeau, Calvinism anda Evangelical Arminianism, p. 413-566; Pieper, Christl. Dogm. II, p. 606-672; Vos, Geref. Dogm. IV, p. 154-210; Schmid, Doct. Theol. Of the Ev. Luth. Church, p. 430-448; Valentine, Chr. Theol. II, p. 214-241; Strong, Syst. Theol., p. 849-868; Dorner, Syst. Of Chr. Doct. IV, p. 194-238; Watson, Theological Institutes II, p. 406-475; De Moor, Rechtvaardigmaking van Eeuwigheid.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof. Pg. 527)