quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A DOUTRINA DAS ESCRITURAS NA REFORMA

A Teologia Reformada recebe seu nome da Reforma Protestante do século XVI, com suas ênfases teológicas distintas, mas é teologia solidamente baseada na própria Bíblia. Os crentes na tradição reformada têm alta consideração às contribuições específicas como as de Martinho Lutero, Úlrico Zwinglio, Guillherme Farel, Jonh Knox e, particularmente, de João Calvino, mas eles também encontram suas fortes distinções nos gigantes da fé que os antecederam, tais como Anselmo e Agostinho e principalmente nas cartas de Paulo e nos ensinamentos do Senhor Jesus Cristo.
Os Cristãos Reformados sustentam as doutrinas características de todos os cristãos, incluindo a Trindade, a verdadeira divindade e humanidade de Jesus Cristo, a necessidade do sacrifício de Jesus pelo pecado, a Igreja como instituição divinamente estabelecida, a inspiração da Bíblia, a exigência para que os cristãos tenham uma vida reta, e a ressurreição do corpo. Eles sustentam outras doutrinas em comum com cristãos evangélicos, tais como justificação somente pela fé, a necessidade do novo nascimento, o retorno pessoal e visível de Jesus Cristo e a Grande Comissão.
O que, então, é distinto a respeito da Teologia Reformada?
1. A Doutrina das Escrituras(sola Scriptura); 2. A doutrina da graça (sola gratia); 3. A doutrina da fé(sola fides); 4. A doutrina de Cristo (solus Christus); 5. A doutrina do sacerdócio universal dos fiéis(cada crente, por assim dizer, é um sacerdote. 1Pedro2.9. O sacerdote no AT intercedia pelo povo).

O compromisso da reforma para com a Escritura enfatiza a inspiração, autoridade e suficiência da Bíblia.
Uma vez que a Bíblia é a Palavra de Deus e, portanto, tem a autoridade do próprio Deus,os reformadores afirmam que essa autoridade é superior àquela de todos os governos e de todas as hierarquias da Igreja.
Essa convicção deu aos crentes reformados a coragem para enfrentar a tirania e fez da teologia reformada uma força revolucionária na sociedade. A suficiência das Escrituras significa que ela não necessita ser suplementada por uma revelação nova ou especial. A Bíblia é o guia completamente suficiente para aquilo que nós devemos crer e para como nós devemos viver como cristãos.
Os Reformadores, em particular, João Calvino, enfatizaram o modo como a Palavra escrita, objetiva e o ministério interior, sobrenatural do Espírito Santo trabalham juntos, e o Espírito Santo iluminando a Palavra para o povo de Deus. A Palavra sem a iluminação do Espírito Santo mantém-se como um livro fechado. A suposta condução do Espírito sem a Palavra leva a erros excessos. Os Reformadores também insistiam sobre o direito de os crentes estudarem as Escrituras por si mesmos. Ainda que não negando o valor de mestres capacitados, eles compreenderam que a clareza das Escrituras em assuntos essenciais para a salvação torna a Bíblia propriedade de todo crente. Com esse direito de acesso, sempre vem a responsabilidade sobre a interpretação cuidadosa e precisa.

SOLA SCRIPTURA (SOMENTE AS ESCRITURAS)
1 – Princípios da Reforma: sola gratia (somente pela graça), sola fides(somente pela fé), solus Christus (somente Jesus Cristo), sacerdócio universal dos fiéis(cada crente, por assim dizer, é um sacerdote. 1Pedro2.9. O sacerdote no AT intercedia pelo povo) , sola Scriptura (somente a Escritura).
2 – Sola Scriptura: Somente a Escritura é a suprema autoridade em matéria de vida e doutrina; só ela é o árbitro de todas as controvérsias (= a supremacia das Escrituras). Ela é a norma normanda ("norma determinante") e não a norma normata ("norma determinada") para todas as decisões de fé e vida.
3 – A autoridade da Escritura é superior à da Igreja e da tradição. Contra a afirmação católica:"a igreja ensina" ou "a tradição ensina, "os reformadores afirmavam: "a Escritura ensina."
4 – A experiência pessoal dos reformadores com as Escrituras e com o Cristo revelado nas Escrituras:
Lutero – "Quando estava com 20 anos de idade, eu ainda não havia visto uma Bíblia. Eu achava que não existiam evangelhos ou epístolas exceto as que estavam escritas nas liturgias dominicais. Finalmente, encontrei uma Bíblia na biblioteca e levei-a comigo para o mosteiro. Eu comecei a ler, reler e ler tudo novamente, para grande surpresa do Dr. Staupitz."
5 – Para os reformadores, a Bíblia não era um livro de doutrinas e proposições a serem aceitas intelectualmente ou mediante a autoridade da igreja, mas uma revelação direta, viva e pessoal de Deus, acessível a qualquer pessoa.
6 – Daí a preocupação de colocar as Escrituras nas línguas vernaculares. Lutero e sua tradução no castelo de Wartburgo. Calvino e sua introdução ao Novo Testamento francês de seu primo Robert Olivétan (1535).

Autor: Alderi Souza de Matos
Fonte:http://www.monergismo.com/textos/cinco_solas/solascriptura_alderi.htm

TEOLOGIA REFORAMADA

www.teologiacalvinista.com 1


Doutrinas Distintivas
da
Teologia Reformada
Terceira Edição
1ªSemestre 2008


A teologia Reformada [ou Calvinista] reconhece a centralidade real de Deus em todas
as coisas, tendo como alvo principal não o tão decantado bem estar humano (que tem
sua relevância), mas a glória de Deus, sabendo que as demais coisas serão
acrescentadas (Mt 6.33; Ef 1.11-12). [...] Para a teologia reformada, entretanto, é a
Palavra de Deus que deve dirigir toda a abordagem e interpretação teológica, bem
como de toda a realidade: O Espírito através da palavra é quem deve nos guiar à
correta interpretação da revelação. As Escrituras são o padrão e apelo final. Rev.
Hermisten Maia Pereira da Costa, Fundamentos da teologia reformada, pg. 33, Editora Mundo Cristão.









O estudo de James Montgomery Boice,
é à base para esta apostila.
(ver Bibliografia)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O PONTO DE VISTA DO QUAL A BÍBLIA CONTEMPLA A OBRA DA CRIAÇÃO

É significativo que a narrativa que a narrativa da criação, embora mencione a criação dos céus, não dá mais atenção ao mundo espiritual. Seu interesse é unicamente o mundo material, e o apresenta primordialmente como a habitação do homem e como o teatro das suas atividades. Ela não trata de realidades invisíveis, como os espíritos, mas de coisas que se vêem. E porque estas coisas são apalpáveis aos sentidos humanos, são objeto de discussão, não somente da teologia, mas também doutras ciências e da filosofia. Mas, enquanto a filosofia procura entender a origem e natureza de todas as coisas pela luz da razão, a teologia toma o seu ponto de partida em Deus, deixa-se guiar por Sua revelação especial concernente à obra da criação, e pondera todas as coisas relacionando-as com Ele. A narrativa da criação é o começo da auto-revelação de Deus, e nos põe a par da relação fundamental em que tudo, o homem inclusive, está com Ele. Ela mostra enfaticamente a posição originária do homem, para que os homens de todas as eras possam ter adequada compreensão do restante da Escritura como revelação da redenção. Apesar de não pretender dar-nos uma completa cosmologia filosófica, contém elementos importantes para a elaboração de uma cosmogonia correta.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

ORIGEM DA NARRATIVA DA CRIAÇÃO

A questão quanto à origem da narrativa da criação tem sido levantada repetidamente, e o interesse por ela foi renovado pelo descobrimento da estória babilônica da criação. Esta estória, pelo que sabemos, tomou forma na cidade de Babilônia, fala da geração de vários deuses, dos quais fica provado que Marduck é o maior. Só ele foi suficientemente poderoso para subjugar o primevo dragão Tiamat, vindo a ser o criador do mundo, e a quem os homens adoram. Há alguns pontos de semelhança entre a narrativa da criação de Gênesis e esta estória babilônica. Ambas falam de um caos primevo, e de uma divisão das águas de baixo e de cima do firmamento. Gênesis fala de sete dias, e o relato babilônico compõe-se de sete tabuinhas. Ambos os relatos ligam os céus à quarta criação, e a criação do homem à sexta. Algumas destas semelhanças são de pequena significação, e as diferenças dos dois relatos são muito mais importantes. A ordem hebraica difere em muitos pontos da babilônica. A maior diferença acha-se, porém, nas concepções religiosas de ambos os relatos. O relato babilônico, diversamente do da Escritura, é mitológico e politeísta. Os deuses não estão em alto nível, mas planejam, conspiram e brigam. E Marduck consegue, somente depois de prolongada luta, que põe à prova o seu poder, dominar as forças malignas e reduzir à ordem o caos. Em Gênesis, por outro lado, encontramos o mais sublime monoteísmo, e vemos Deus produzir o universo e todas as coisas criadas pela simples palavra do Seu poder. Quando foi descoberto o relato babilônico, muitos estudiosos logo supuseram que a narrativa bíblica provinha da fonte babilônica, esquecidos de que existem pelo menos outras duas possibilidades, a saber: (a) que a estória babilônica é uma reprodução pervertida da narrativa de Gênesis; ou (b) que ambas provêm de uma fonte comum, mas primitiva. Mas, seja qual for a resposta a esta questão, não resolverá o problema da origem da narrativa. Como é que a fonte original, escrita ou oral, veio a existência? Alguns a consideram simples produto da reflexão do homem sobre a origem das coisas. Mas esta explicação é extremamente improvável, em vista dos seguintes fatos: (a) a idéia da criação é incompreensível; (b) a ciência e a filosofia opõem-se igualmente à doutrina da criação do nado; e (c) é somente pela fé que entendemos que os mundos foram estruturados pela palavra de Deus, Hb 11.3. Portanto, chegamos à conclusão de que a história da criação foi revelada a Moisés ou a um dos patriarcas anteriores. Se esta revelação foi pré-mosaica, passou como tradição (oral ou escrita) de geração a geração, provavelmente perdeu algo da sua pureza original e, finalmente, foi incorporada, em forma pura, sob a direção do Espírito Santo, no primeiro livro da Bíblia.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

A INTERPRETAÇÃO DE GN 1.1, 2

Alguns consideram Gn 1.1 como sobrescrito ou título da narrativa completa da criação. Mas isso é objetável, por três razões: (a) por que a narrativa subseqüente está ligada ao versículo primeiro pela conjunção hebraica waw, ou vav (e), o que não aconteceria se o versículo primeiro fosse um título; (b) porque, com base nessa suposição, não haveria relato de nenhuma espécie da criação original e imediata; e (c) visto que os versículos subseqüentes não contém nenhum relato da criação dos céus. A interpretação mais geralmente aceita é que Gn 1.1 registra a criação original e imediata do universo, hebraisticamente chamado “céus e terra”. Nesta expressão, a palavra “céus” refere-se à ordem invisível das coisas nas quais a glória de Deus se revela de maneira a mais perfeita. O termo não pode ser considerado como um designativo dos céus cósmicos, quer das nuvens quer dos astros, pois estes foram criados no segundo e no quarto dia da obra criadora. Em seguida, no versículo 2, o autor descreve a condição originária da terra (comp. Sl 104.5, 6). É uma questão discutível, se a criação original da matéria fazia parte da obra do primeiro dia, ou se estava separada desta por um período de tempo mais curto ou mais longo. Dos que interpõem um longo período entre ambas, uns sustentam que o mundo era originariamente um lugar de habitação de anjos, foi destruído como resultado de uma queda ocorrida no mundo angélico, e foi então reclamado e transformado numa adequada habitação para os homens. Referir-nos-emos a esta teoria da restituição noutro contexto.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

O Hexameron, ou a Obra dos Dias Separados

Depois da criação do universo do nada, num momento, o caos existente foi sendo aos poucos transformado num cosmos, num mundo habitável, em seis dias sucessivos. Antes de se indicar a obra realizada dia por dia, a questão quanto à extensão dos dias da criação requer breve exame.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

A CRIAÇÃO - CONSIDERAÇÃO DA TEORIA DE QUE FORAM LONGOS PERÍODOS DE TEMPO

Alguns estudiosos presumem que os dias de Gn 1 foram longos períodos de tempo, com o fim de harmonizá-los com os períodos geológicos. A opinião de que esses dias não eram dias comuns de vinte e quatro horas não era inteiramente alheia à teologia cristã primitiva, como E. C. Messenger o demonstra detalhadamente em sua erudita obra sobre Evolução e Teologia (Evolution and Theology). Mas alguns dos “pais da igreja” que declaravam que esses dias provavelmente não eram considerados como dias comuns, expressavam a opinião de que toda a obra da criação foi concluída num só momento, e que os dias constituíam apenas uma estrutura simbólica que facilitava a descrição da obra da criação de maneira ordenada, tornando-a mais inteligível para as mentes finitas. A opinião de que os dias da criação foram longos períodos tornou a vir para o primeiro plano em anos recentes, não, porém, como resultado de estudos exegéticos, mas sob a influência de declarações da ciência. Anteriormente ao século dezenove, os dias da criação eram geralmente considerados como dias literais. Mas, naturalmente, a interpretação humana é falível, e poderia ser revista à luz de novas descobertas. Se a exegese tradicional estiver em conflito, não meramente com teorias científicas – elas também são interpretações – mas com fatos bem estabelecidos, a reconsideração e a reinterpretação serão válidas. Contudo, dificilmente se pode sustentar que os supostos períodos geológicos requerem uma mudança frontal, desde que de modo nenhum são geralmente reconhecidos, mesmo nos círculos científicos, como fatos bem estabelecidos. Alguns eruditos cristãos, como Harris, Miley, Bettex e Geesink, supõem que os dias de Gênesis são dias geológicos, e tanto Shedd como Hodge chamam a atenção para o extraordinário acordo existente entre o registro bíblico da criação e o testemunho das rochas, e tendem a considerar os dias de Gênesis como períodos geológicos.
Pode-se levantar a questão sobre se será exegeticamente possível conceber os dias de Gênesis como longos períodos de tempo. E então se deve admitir que a palavra yom nem sempre indica um período de vinte e quatro horas na Escritura, e nem sempre é empregada no mesmo sentido, mesmo na narrativa da criação. Pode significar o período de claridade, em distinção das trevas, Gn 1.5, 16, 18; dia e noite juntos, Gn 1.5, 8, 13 etc.; os seis dias juntos, Gn 2.4; e um período indefinido, assinalado em toda a sua extensão por algum traço característico, como tribulação, Sl 20.1, ira, Jó 20.28, prosperidade, Ec 7.14, ou salvação, 2 Co 6.2. Pois bem, alguns sustentam que a Bíblia favorece a idéia de que os dias da criação foram períodos indefinidos de tempo, e chamam a atenção para o seguinte: (a) O sol não foi criado antes do quarto dia e, portanto, a extensão dos dias anteriores ao quarto ainda não poderia ser determinada pela relação da terra com sol. Perfeitamente, mas isso não prova o ponto. É evidente que Deus estabelecera uma alternativa rítmica de luz e trevas, mesmo antes do quarto dia, e não há base para a suposição de que os dias assim mensurados tinham duração mais prolongada que os dias posteriores. Por que haveríamos de admitir que Deus aumentou enormemente a velocidade das revoluções da terra depois que a luz foi concentrada no sol? (b) Os referidos dias são dias de Deus, dias arquetípicos, dos quais os dias dos homens são meras copias ectípicas; e para Deus, mil anos são como um dia, Sl 90.4; 2 Pe 3.8. Mas este argumento se funda numa confusão do tempo e a eternidade. Deus ad intra não tem dias, mas habita na eternidade, exaltado muito acima de todas as limitações de tempo. Esta é também a idéia Ada em Sl 90.4 e 2 Pe 3.8. Os únicos dias reais de que Deus tem conhecimento são os dias deste mundo temporal-espacial. Como poderá seguir-se do fato de que Deus é exaltado acima das limitações de tempo, como existem neste mundo, onde o tempo é medido por dias, semanas, meses e anos – sim, como poderá resultar daí que um dia tanto pode ser um período de 100.000 anos como um período de vinte e quatro horas? (c) O sétimo dia, dia em que Deus descansou da Sua obra criadora, continua, segundo se diz, até à época atual e, portanto, deve ser considerado como um período de mil anos. É o sábado (sabbath, repouso), e esse repouso sabático jamais termina. Este argumento representa uma confusão semelhante à anterior. Toda a idéia de Deus iniciado a obra da criação num certo ponto do tempo e cessando depois de um período de seis dias, não se aplica a Deus como ele é em Si mesmo, mas somente aos resultados temporais da Sua atividade criadora. Ele é imutavelmente o mesmo por todas as eras. Seu repouso não é um período de tempo indefinidamente prolongado; é eterno. Por outro lado, o sábado da semana da criação teve duração igual à dos outros dias. Deus não somente descansou naquele dia, mas também o abençoou e o santificou, separando-o como dia de descanso para o homem, Ex 20.11. Dificilmente se aplicaria a todo o período que se estende da época d criação até aos dias atuais.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

A CRIAÇÃO

CONSIDERAÇÃO DO CONCEITO DE QUE FORAM DIAS LITERAIS

A idéia predominante sempre foi que os dias de Gênesis 1 devem se entendidos como dias literais. Alguns dos primeiros “pais da igreja” não os consideravam como reais indicações do tempo em que se completou a obra da criação, mas, antes, como formas literais nas quais o escritor de Gênesis moldou a narrativa da criação, a fim de retratar a obra da criação – que realmente se completou num momento – de maneira ordenada, para facilitar a compreensão humana. Foi só depois que as ciências relativamente novas da geologia e da paleontologia vieram com as suas teorias da excessivamente longa idade da terra, que os teólogos começaram a mostrar uma inclinação para identificar os dias da criação com as longas eras geológicas. Hoje alguns deles consideram fato estabelecido que os dias de Gênesis foram longos períodos geológicos; outros são um tanto propensos a assumir esta posição, mas mostram considerável hesitação. Hodge, Sheldon, Van Oosterzee e Dabney, alguns dos que não são inteiramente avessos a este conceito, concordam que esta interpretação dos dias é exegeticamente duvidosa, se não impossível. Kuyper e Bavinck sustentam que, conquanto os três primeiros dias possam ter sido de duração um tanto diversa, os últimos três certamente foram dias comuns. Naturalmente eles não consideravam nem os três primeiros dias como períodos geológicos. Vos, em sua Gereformeerde Dogmatiek defende a posição de que os dias da criação foram dias comuns. Hepp toma a mesma posição em sua obra, Calvinism and the Philosophy of Nature. Noortzij, em Gods Woord em der Eeuwen Getuigenis, afirma que a palavra yom (dia) em Gn 1 não pode designar senão um dia comum, mas sustenta que o escritor de Gênesis não atribuía muita importância ao conceito “dia”, porem o introduziu simplesmente como parte de uma estrutura básica para a narrativa da criação, não para indicar a seqüência histórica, e, sim, para descrever a gloria das criaturas à luz do grande propósito redentor de Deus. Daí o sábado é o grande ponto culminante, em que o homem chega ao seu real destino. Esta idéia traz-nos vivamente à memória a posição de alguns dos primeiros “pais da igreja”. Os argumentos aduzidos em seu favor não são muito convincentes, como Aalders o demonstra em sua obra, De Eerste Drie Hoofdstuken van Gênesis. Baseado em Gn 1.5, este especialista em Velho Testamento sustenta que o termo yom, em Gn 1, denota simplesmente o período de luz como distinto do das trevas; mas esta opinião pareça envolver, antes, uma interpretação antinatural da repetida expressão, “houve tarde e manha”. Então, esta terá que ser interpretada no sentido de, houve tarde precedida por manhã. Segundo o dr. Aalders, também a Escritura certamente favorece a idéia de que os dias da criação foram dias comuns, embora não seja possível determinar a sua duração exata, e os três primeiros dias podem ter diferido em alguma proporção dos últimos três.
A interpretação literal do termo “dia” em Gn 1 é favorecida pelas seguintes considerações: (a) Em seu significado primário, apalavra yom denota um dia natural; e é boa regra de exegese não abandonar o significado primário de uma palavra, a menos que isto seja exigido pelo contexto. O dr. Noortzij salienta o fato de que esta palavra simplesmente não significa outra coisa senão “dia”, como este é conhecido pelo homem na terra. (b) O autor de Gênesis parece ter-nos aprisionado absolutamente na interpretação literal acrescentando, quanto a cada dia, as palavras: “houve tarde e houve manhã”. Cada um dos dias mencionados tem precisamente uma tarde e uma manhã, coisa que dificilmente se poderia aplicar a um período de mil anos. E se se disser que os períodos da criação foram dias extraordinários, cada um deles consistindo de um longo dia e uma longa noite, levantar-se-á naturalmente a questão: Que seria da vegetação durante a compridíssima noite? (c) Em Ex 20.9-11 ordena-se a Israel que trabalhe seis dias e descanse no sétimo, porque Jeová fez os céus e aterra em seis dias e descansou no sétimo. Uma boa exegese parece exigir que a palavra “dia” seja tomada no mesmo sentido em ambos os casos. Além disso, o sábado separado para descanso e certamente um dia literal; e o que se pode presumir é que os outros dias eram da mesma espécie. (d) Os últimos três dias certamente foram dias precedentes não diferiam nem um pouco deles em duração, é exatamente improvável que diferissem deles como períodos de milhares de anos diferem dos dias comuns. Pode-se também indagar por que se requeria um período tão longo assim para, por exemplo, a separação de luz e trevas.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

RELATO DA CRIAÇÃO - O primeiro dia

No primeiro dia a luz foi criada e, pela separação da luz e trevas, o dia e a noite foram constituídos. Esta criação da luz no primeiro dia tem sido ridicularizada em vista do fato de que o sol não foi criado antes do quarto dia, mas a própria ciência fez calar o ridículo ao provar que a luz não é uma substância que emana do sol, mas consiste de ondas de éter produzidas por elétrons energéticos. Note-se também que gênesis não fala do sol como luz (or), mas como luzeiro, ou portador de luz (ma’or), exatamente o que a ciência descobriu que é. Em vista do fato de que a luz é a condição de toda forma de vida, nada mais natural que fosse criada primeiro. Deus também instituiu logo a ordem de alternância de luz e trevas, chamando à luz dia e às trevas noite. Não nos é dito, porém, como se efetuou esta alternância, O relato da obra de cada dia termina com estas palavras: “houve tarde e houve manhã”. Os dias não são computados de tarde a tarde, mas de manhã a manhã. Depois de doze horas houve tarde, e depois doutras doze horas houve manhã.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

RELATO DA CRIAÇÃO - O segundo dia

A obra do segundo dia também foi uma obra de separação: o firmamento foi estabelecido com a divisão das águas de cima e as águas de baixo. As águas de cia são as nuvens, e não, como dizem alguns, o mar de vidro, Ap 4.6; 15.2, e o rio da vida, Ap 22.1. Alguns têm procurado desacreditar o relato mosaico com a suposição de que apresenta o firmamento como uma abobada sólida; mas isso não tem base nenhuma, pois a palavra hebraica raqia absolutamente não indica uma abobada sólida, mas é equivalente ao termo “expansão”.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

RELATO DA CRIAÇÃO - O terceiro dia

A separação é levada avante ainda com a separação entre o mar e a terra seca, cf. Sl 104.8. Em acréscimo a isso, foi estabelecido o reino vegetal de plantas e arvores. Três grandes classes de vegetais são mencionadas, a saber, deshe’, isto é plantas que não dão flores, que não frutificam umas das outras da maneira usual; ’esebh, consistindo de vegetais e grãos que dão semente; e ’ets peri ou arvores frutíferas, que dão frutos segundo a sua espécie. Deve-se notar aqui: (1) Que, quando Deus disse, “Produza a terra relva” etc., isso não equivale a dizer: Desenvolva-se a matéria inorgânica, por sua própria energia inerente, tornando-se vida vegetal. Foi uma palavra de poder pela qual Deus implantou o principio de vida na terra, e assim capacitou-a a produzir relva, ervas e árvores. Gn 2.9 evidencia que se trata de uma palavra criadora. (2) Que a declaração, “A terra, pois, produziu relva, ervas que davam semente segundo a sua espécie, e arvores que davam fruto, cuja semente estava nele, conforme a sua espécie” (vers. 12), favorece definitivamente a idéia de que as diferentes espécies de plantas foram criadas por Deus, e não que se desenvolveram umas das outras. Cad qual produzia semente segundo a sua espécie e, portanto, só podia reproduzir a sua espécie. A doutrina da evolução nega, naturalmente, ambas estas asserções; mas devemos ter em mente que tanto a geração espontânea como o desenvolvimento de uma espécie provindo doutra, são suposições não provadas e, hoje em dia, grandemente desacreditadas.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

RELATO DA CRIAÇÃO - O quinto dia

Este dia traz a criação das aves e dos peixes, habitantes das águas e dos ares. Aves e peixes estão juntos porque há grande similaridade em sua estrutura orgânica. Alem disso, são caracterizados por uma instabilidade e mobilidade que eles têm em comum com o elemento em que se movem, em distinção do terreno sólido. Também se assemelham em seu processo de procriação. Observe-se que eles também foram criados segundo a sua espécie, isto é, as espécies foram criadas.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

RELATO DA CRIAÇÃO - O sexto dia

Este dia traz o clímax da obra da criação. Em conexão com a criação dos animais, emprega-se mais uma vez a expressão, “Produza a terá”, e isto de novo deve ser interpretado do modo indicado no item (c). Os animais não se desenvolveram naturalmente da terra, mas foram produzidos pelo fiat criador de Deus. De maneira definida se nos diz no versículo 25 que Deus fez os animais selváticos, os animais domésticos e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. Mas, mesmo que a expressai se referisse ao desenvolvimento natural, não estaria em harmonia com a doutrina da evolução, visto que não ensina que os animais se desenvolveram diretamente do mundo mineral. A criação do homem se distingue pelo solene conselho que a precede: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”; e não é para espantar-nos, desde que tudo que a precedeu foi apenas uma preparação para o surgimento do homem, a coroa da obra de Deus, o rei da criação; e porque o homem foi destinado a ser a imagem de Deus. As palavras tselem e demuth não indicam exatamente a mesma coisa, mas, não obstante, são empregadas umas pela outras. Quando se diz que o homem foi criado à imagem de Deus, significa que Deus é o arquétipo do qual o homem é o éctipo; e quando se acrescenta que ele foi criado conforme a semelhança de Deus, isto meramente acrescenta a idéia de que a imagem é de todos os modos semelhante ao original. Em todo o seu ser o homem é a própria imagem de Deus.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

RELATO DA CRIAÇÃO - O sétimo dia

O descanso de Deus no sétimo dia contém, antes de tudo, um elemento negativo. Deus cessou a Sua obra criadora. Mas a isso deve ser acrescentado um elemento positivo, a saber, que Ele teve prazer em Sua obra completa. Seu repouso foi o repouso do artista que, após haver completado a sua obra prima, agora a observa com profunda admiração e deleite, e se satisfaz perfeitamente contemplando sua produção. “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom”. Ela respondeu ao propósito de Deus e correspondeu ao ideal divino. Daí, Deus se regozija com a Sua criação, pois reconhece nela o reflexo das Suas gloriosas perfeições. Seu resplandecente semblante brilha sobre ela e lhe derrama chuvas de bênçãos.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

NÃO HÁ UM SEGUNDO RELATO DA CRIAÇÃO EM GÊNESIS

É comum a alta critica avançada supor que Gn 2 contem um segundo e independente relato da criação. O primeiro relato é considerado como obra do autor eloista, e o segundo, do jeovista. Os dois, é o que diz, não concordam, mas conflitam em diversos pontos. Conforme o segundo relato, em distinção do primeiro, aterra ficou seca antes da criação das plantas; o homem foi criado antes dos animais, e o homem somente, não o homem e a mulher; depois Deus criou os animais para ver se eles serviam de companheiros para o homem; vendo que falharam nisso, Deus criou a mulher como auxiliadora do homem; e, finalmente, colocou o homem no jardim que preparara para ele. Mas é evidente que isso é uma completa incompreensão do capitulo dois. Gênesis 2 não é, e não pretende ser, uma narrativa da criação. O titulo introdutório ’eleh toledoth (estas são as gerações), que se acha dez vezes em Gênesis, nunca se refere ao nascimento ou à origem das coisas, mas sempre aos nascimentos ou geração delas decorrente, isto é, à sua historia posterior. A expressão data de um tempo em que a historia ainda consistia da descrição das gerações. O capitulo dois de Gênesis começa com a descrição da historia do homem, dispõe o seu material com vistas a adequá-lo a esse propósito, e do capitulo primeiro sé repete o necessário para cumprir o propósito do autor, e o repete sem levar em conta a ordem cronológica.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

TENTATIVA PARA HARMONIZAR NARRATIVA DA CRIAÇÃO COM AS DESCOBERTAS DA CIÊNCIA.

a. Interpretação ideal ou alegórica. Dá proeminência à idéia, e não à letra da narrativa. Considera Gênesis 1 como uma descrição poética da obra criadora de Deus, apresentando-a com diferentes pontos de vista. Mas (1) é evidente que a narrativa foi feita com a intenção de construir um registro de fatos históricos, e assim é considerada na Escritura, cf. Ex 20.11; Ne 9.6; Sl 33.6, 9; 145.2-6; (2) ao capitulo inicial de Gênesis “faltam quase todos os elementos da poesia hebraica reconhecida como tal” (Strong); e (3) esta narrativa liga-se indissoluvelmente à historia subseqüente e, portanto, o ,ais natural é considerá-la historia fatual.
b. Teoria mítica da filosofia moderna. A filosofia moderna foi alem da posição anterior. Não só rejeita a narrativa histórica da criação, mas também rejeita a idéia da criação, e considera o conteúdo de Gênesis 1 como um mito que incorpora uma lição religiosa. Não há alegoria intencional ai, é que se diz, mas apenas uma representação mítica e ingênua com um cerne ou núcleo religioso. Isso também contraria o fato de que Gênesis 1 certamente nos vem com a pretensão de ser uma narrativa histórica, e nas referencia bíblicas mencionadas acima, por certo que não é considerado mito.
c. Teoria da restituição. Alguns teólogos tentaram conciliar a narrativa da criação com as descobertas da ciência no estudo da terra, adotando a teoria da restituição. Esta foi defendida por Chalmers, Buckland, Wisemann e Delitzsch, e supõe que transcorreu um longo período entre a criação primaria, mencionada em Gn 1.1, e a criação secundaria, descrita em Gn 1.3-31. Este longo período foi marcado por varias alterações catastróficas, resultando na destruição supostamente descrita pelas palavras “sem forma e vazia”. Então, deve-se ler o versículo dois: “É a terra se tornou sem forma e vazia”. Esta destruição foi seguida por uma restituição, quando Deus transformou o caos em cosmos, um mundo habitável para o homem. Esta teoria talvez ofereça alguma explicação dos diferentes estratos da terra, mas não oferece explicação dos fosseis das rochas, a menos que se admita que houve também sucessivas criações de animais seguidas de destruições em massa. Esta teoria nunca encontrou apoio nos círculos científicos, e não acha suporte na Escritura. A Bíblia não diz que a terra se tornou, mas que era sem forma e vazia. E mesmo que se possa traduzir o verbo hebraico hayetha por “tornou-se”, as palavras “sem forma e vazia” denotam uma condição não formada, e não uma condição resultante de destruição. Delitzsch combinou com esta teoria a idéia de que originalmente a terra era habitada por anjos, e que a queda ocorrida no mundo angélico foi destruição que resultou no referido no versículo 2. Por uma ou outra razão, este conceito é consideravelmente favorecido pelos dispensacionalistas dos dias atuais, que, para apóia-lo, recorrem a passagens como Is 24.1; Jr 4.23-26; Jó 9.4-7; 2 Pe 2.4. Mas, uma cuidadosa leitura destas mesmas passagens é suficiente para convencer o interessado de que elas não provam o ponto em questão, de maneira nenhuma. Alem disso, a Bíblia nos ensina claramente que Deus criou os céus e a terra “e todo o seu exercito” em seis dias, Gn 2.1; Êx 20.11.
d. Teoria da harmonização. Procura harmonizar a Escritura com a ciência presumindo que os dias da criação foram períodos de milhares de anos. Em acréscimos ao que foi dito sobre isto nas considerações sobre os dias da criação, podemos dizer agora que a idéia de que os estratos da terra indicam possivelmente longos e sucessivos períodos de desenvolvimento da historia da sua origem, não passa de mera hipótese dos geólogos, hipótese baseada em generalizações infundadas. Queremos chamar a atenção para as seguintes considerações: (1) A geologia não somente é uma ciência nova, mas também ainda esta presa ao pensamento especulativo. Não pode ser considerada uma ciência indutiva, desde que em grande parte é fruto de um raciocínio a priori ou dedutivo. Spencer chamava-lhe “Ciência Ilógica” e ridicularizava os seus métodos, e Huxley falava da grande hipótese por ela apregoada como “não comprovada e improvável”. (2) Ate o presente, ela tem feito pouco mais que esgaravatar a supervicie da terra, e isso num número muito limitado de lugares. O resultado é que as suas conclusões são muitas vezes meras generalizações, baseadas em dados insuficientes. Fatos ocorridos nalguns lugares contradizem fatos observados noutros. (3) Mesmo que tivesse explorado grandes áreas em todas as partes do globo, só poderia dar-nos informação perfeitamente fidedigna sobre a sua história passada. Não se pode escrever a história de uma nação com base nos fatos observados em sua presente constituição e vida. (4) Os geólogos partiram logo da pressuposição de que os estratos das rochas achavam-se na mesma ordem em todo o globo terráqueo; e isso, calculando que a extensão do tempo requerido para a formação de cada um deles poderia determinar a idade da terra. Mas (a) viu-se que a ordem das rochas difere em várias localidades; (b) as experiências feitas para determinar o tempo requerido para a formação dos diferentes estratos levaram a resultados muito diferentes; e (c) viu-se que a teoria uniformitária de Lyell, de que a ação física e química de hoje é guia seguro para avaliar a de todas as épocas anteriores, não merece confiança. (5) Quando as tentativas de determinar a idade dos diversos estratos ou rochas por sua constituição mineral e mecânica falharam, os geólogos começaram a fazer dos fósseis o fator dominante. A paleontologia veio a ser a disciplina verdadeiramente importante, e sob a influência do princípio uniformitário de Leyll, desenvolveu-se e se tornou uma das importantes provas do evolucionismo. Simplesmente se pressupõe que certos fósseis são mais antigos que outros; e se se levanta a questão sobre qual a base em que se firma essa pressuposição, a resposta é que os fósseis se acham nas rochas mais antigas. Isto não passa de raciocínio em círculo. A idade das rochas é determinada pelos fósseis que elas contém, e a idade dos fósseis é determinada pelas rochas em que eles se acham. Mas nem sempre se encontram os fósseis na mesma ordem; às vezes a ordem é invertida. (6) a ordem dos fósseis, como agora determinada pela geologia, não corresponde à ordem que a narrativa da criação nos leva a esperar, de sorte que, mesmo a aceitação da hipótese geológica não atenderia ao propósito de harmonizar a Escritura com a ciência.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

A DOUTRINA DA CRIAÇÃO E A HIPÓTESE EVOLUCIONISTA

Naturalmente surge em nossos dias a questão: Como a hipótese evolucionista afeta a doutrina da criação?
a. A hipótese evolucionista não pode tomar o lugar da doutrina da criação. Alguns falam como se a hipótese da evolução oferecesse uma explicação da origem do mundo; mas isto é evidentemente um erro, pois ela não faz tal coisa. Evolução é desenvolvimento, e todo desenvolvimento pressupõe a existência prévia de uma entidade ou princípio ou a energia da qual alguma coisa se desenvolve. A não existência não pode desenvolver-se e tornar-se existência. A matéria e a energia não poderiam evoluir do nada. Tem sido costumeiro voltarem os evolucionistas à hipótese nebular para a explicação da origem do sistema solar, apesar de que no presente ela foi suplantada pela hipótese planetesimal.* Mas ambas só fazem o problema retroceder um passo mais, e não conseguem soluciona-lo. O evolucionista tem que recorrer à teoria de que a matéria é eterna, ou aceitar a doutrina da criação.
b. A hipótese da evolução naturalista não se humaniza com a narrativa da criação. Se a evolução não explica a origem do mundo, não dará ao menos uma explicação racional do desenvolvimento das coisas desde a matéria primordial, e assim não explicará a origem das espécies atuais das plantas e animais (o homem inclusive) e também os vários fenômenos da vida, como a consciência, a inteligência, a moralidade e a religião? Estará ela necessariamente em conflito com a narrativa da criação? Ora, é mais que evidente que a evolução naturalista está em conflito com a narrativa bíblica. A Bíblia ensina que as plantas e os animais apareceram em cena ao fiat criador do Todo-poderoso; mas, segundo a hipótese evolucionista, eles evoluíram do mundo inorgânico por um processo de desenvolvimento natural. A Bíblia apresenta Deus criando plantas e animais segundo a espécie destes, e produzindo frutos segundo a sua espécie, isto é, para que reproduzissem a sua espécie, isto é, para que reproduzissem a sua espécie; mas a hipótese evolucionista tem em vista forças naturais, residentes na natureza, que levam ao desenvolvimento de uma espécie a partir de outra. Conforme a narrativa da criação, os reinos vegetal e animal e o homem foram produzidos numa única semana; mas a hipótese evolucionista os considera produtos de um desenvolvimento gradual no transcurso de milhões de anos. A Escritura retrata o homem como estando no plano mais elevado no início da sua carreira, e depois descendo a níveis mais baixos pela influência deteriorante do pecado; por outro lado, a hipótese evolucionista descreve o homem original como apenas ligeiramente diverso dos animais, e pretende que araçá humana, por meio de seus poderes inerentes, foi-se elevando a níveis de existência cada vez mais altos.
c. A teoria da evolução naturalista não está bem estabelecida e não explica os fatos. O conflito referido no item anterior seria coisa séria, se a hipótese evolucionista fosse um fato estabelecido. Alguns acham que é, e falam confiantemente do dogma do evolucionismo. Outros, porém, corretamente nos lembram que o evolucionismo ainda é apenas uma hipótese. Mesmo o grande cientista Ambrose Fleming declara que “a rigorosa análise da idéias ligadas ao termo evolução mostra que elas são insuficientes como solução filosófica ou científica do problema da realidade e da existência”. A própria incerteza que prevalece no campo dos evolucionistas é a prova categórica de que o evolucionismo é apenas uma hipótese. Além disso, muitos que ainda se apegam ao princípio evolucionista admitem francamente hoje que não entendem o método de operação do evolucionismo. Houve tempo em que se pensava que Darwin fornecera a chave do problema todo, mas essa chave é geralmente rejeitada hoje em dia. As colunas do alicerce sobre as quais a estrutura darwiniana se encarapitou, tais como os princípios do uso e desuso, da luta pela existência, da seleção natural e da transmissão dos caracteres adquiridos, foram retiradas uma após outra. Evolucionistas como Weissmann, De Vries, Mendel e Bateson, cooperaram todos para o colapso do edifício darwiniano. Em sua História da Biologia (history of Biology), Nordenskioeld fala da “dissolução do darwinismo” como fato consumado. Dennert convida-nos para aproximar-nos do leito de morte do darwinismo, e O’Toole diz: “O darwinismo está morto, e nenhum choro de carpideiras poderá ressuscitar o cadáver”. Morton fala da “bancarrota do evolucionismo”, e Price se refere ao “fantasma da evolução orgânica”. Confessadamente, pois, o darwinismo não pôde explicar a origem das espécies, e os evolucionistas não conseguem oferecer uma explicação melhor. A lei de Mendel explica variações, mas não a origem de novas espécies. De fato, ela se desvia do desenvolvimento de novas espécies por um processo natural. Alguns são de opinião que a teoria das mutações, de De Vries, ou a teoria da evolução emergente de Lloyd Morgan, indica o caminho, mas nem esta nem aquela provaram que constituem uma feliz explicação da origem das espécies pelo desenvolvimento natural puro e simples. Admite-se agora que os mutantes de De Vries são relativos a variedades, e não a espécies, não podendo ser considerados como princípios de novas espécies. E Morgan sente-se constrangido a admitir que não pode explicar os seus emergentes sem cair de novo nalgum poder criador, que poderia chamar-se Deus. Diz Morton: “O fato é que além da criação, não existe nem mesmo uma teoria das origens em campo hoje”. A hipótese evolucionista falha em vários pontos. Ela não pode explicar a origem da vida. Os evolucionistas buscaram a explicação dela na geração espontânea, uma suposição não provada e atualmente desacreditada. É um fato bem estabelecido pela ciência que ávida só pode provir da vida antecedente. Ademais, ela fracassou completamente quanto a aduzir um só exemplo de uma espécie produzindo outra espécie diferente (orgânica, em distinção do caos que constituem variedades). Em 1921 disse Bateson: “Não podemos ver como se deu a diferenciação das espécies. Variações de muitos tipos, com freqüência consideráveis, testemunhamos diariamente, mas nenhuma origem de espécies. ...Enquanto isso, embora a nossa fé no evolucionismo permaneça firme, não temos uma aceitável explicação da origem das espécies”. O evolucionismo não foi capaz também de enfrentar com êxito os problemas apresentados pela origem do homem. Não conseguiu sequer provar que fisicamente o homem descende dos animais. J. A. Thomson, autor de The Outline of Science (Esboço da Ciência) e um dos principais evolucionistas, sustenta que o homem realmente nunca foi um animal, uma criatura de aparência feroz e animalesca, mas que o primeiro homem surgiu abruptamente, por um grande salto, do tronco dos primatas a um ser humano. Muito menos pode explicar o lado psíquico da vida do homem. A alma humana, dotada de inteligência, auto-percepção, liberdade, consciência e aspirações religiosas, continua sendo um enigma não resolvido.
d. O evolucionismo teísta é insustentável, à luz da Escritura. Alguns cientistas e filósofos cristãos procuram harmonizar a doutrina da criação, ensinada pela Escritura, com a hipótese e evolucionista, aceitando o que denominam evolucionismo teísta. É um protesto contra a tentativa de eliminar Deus, e O defende como o realizador todo-poderoso que está por trás de todo o processo de desenvolvimento. A evolução é tida simplesmente como o método de ação de Deus no desenvolvimento da natureza. O evolucionismo teísta chega realmente ao ponto de dizer que Deus criou o mundo (o cosmos) por um processo de evolução, um processo de desenvolvimento natural, no qual Ele não intervém miraculosamente, exceto nos caos de absoluta necessidade. Ele se dispõe a admitir que o princípio absoluto do mundo só poderia resultar de uma atividade criadora direta de Deus; e, se não pode encontrar uma explicação natural, também garante uma intervenção direta de Deus na originação da vida e do homem. Esse modo de ver tem sido aclamado como evolucionismo cristão, embora não haja necessariamente nada de cristão nele. Muitos que doutro modo se oporiam à hipótese evolucionista, acolheram-no porque ele reconhece Deus no processo e é supostamente compatível com a doutrina escriturística da criação. Daí, é ensinado livremente nas igrejas e nas escolas dominicais. Contudo, é de fato um produto híbrido muito perigoso. O nome é uma contradição terminológica, pois não é nem teísmo nem naturalismo, e não é criação nem evolução no sentido em que os termos são comumente aceitos. E não se requer muita capacidade de penetração para ver-se que p Dr. Fairhust está certo em sua convicção de “que o evolucionismo teísta destrói a Bíblia como livro inspirado e sua autoridade coma mesma eficiência do evolucionismo ateu”. À semelhança do evolucionismo naturalista, o evolucionismo teísta ensina que foram necessários milhões de anos para a produção do presente mundo habitável; e que Deus não criou várias espécies de plantas e animais, e isto para reproduzirem sua espécie; que o homem, ao menos em seu lado físico, é descendente dos animais e, portanto, começou a sua carreira num nível baixo; que não houve queda nenhuma, no sentido bíblico da palavra, mas apenas repetidos deslizes dos homens em seu curso ascensional; que o pecado é apenas uma fraqueza, resultante dos instintos e desejos animais do homem, e não constitui culpa; que a redenção é conseguida pelo sempre crescente domínio do elemento superior presente no homem sobre as suas propensões inferiores; que não ocorrem milagres, quer no mundo natural quer no espiritual; que a regeneração, a conversão e a santificação são simplesmente mudanças psicológicas naturais, e assim por diante. Numa palavra, é uma hipótese que subverte absolutamente a verdade da Escritura.
Alguns eruditos dos dias atuais acham que a teoria da evolução criadora, de Bergson,* se recomenda por si mesma aos que não querem deixar Deus fora de consideração. Este filósofo francês pressupõe um élan vital no mundo, como base e princípio dinâmico de toda vida. Este princípio vital não brota da matéria, mas é, antes, a causa originadora da matéria. Ele permeia a matéria, vence sua inércia e sua resistência agindo como uma força viva naquilo que essencialmente está morto, e sempre cria, não material novo, mas novos movimentos adaptados aos seus próprios fins, e assim cria de maneira muito semelhante à criação do artista. Tem direção e propósito e, contudo, embora consciente, não opera segundo um plano preconcebido, conquanto isso seja possível. Ele determina a evolução propriamente dita, bem como a direção em que a evolução se move. Esta vida permanentemente criadora, “da qual todo indivíduo e toda espécie é uma experiência”, é o Deus de Bergson, um Deus finito, de poder limitado e que, ao que parece, é impessoal, embora Hermann diga que “nós talvez não erremos muito se acreditarmos que ele será ‘a tendência ideal da coisas’tornada pessoal”. Haas fala de Bergson como panteísta vitalista, e não teísta. De qualquer forma, seu Deus é um Deus que se acha totalmente dentro do mundo. Essa maneira de ver pode exercer especial atração sobre o teólogo liberal moderno, mas está ainda menos em harmonia com a narrativa bíblica da criação do que o evolucionismo teísta.
QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA. 1. Qual é a verdadeira alternativa para a doutrina da criação? 2. Onde está a importância da doutrina da criação? 3. Deve-se conceder que os primeiros capítulos de Gênesis se apóiem de alguma forma no estudo científico da origem das coisas? 4. A Bíblia determina de algum modo a data em que o mundo foi criado? 5. Que extremos devem ser evitados quanto à relação mútua entre Deus e o mundo? 6. A Bíblia sempre deve ser interpretada em harmonia com teorias científicas amplamente aceitas? 7. Que posição ocupa a hipótese evolucionista no mundo científico de hoje? 8. Qual é o elemento característico da teoria evolucionista darwinista? 9. Como se pode explicar o seu repúdio generalizado nos dias atuais? 10. Como a evolução criadora de Bergson, ou o neo-vitalismo de Hans Driesch afetam a visão mecanicista do universo? 11. Em que aspecto o evolucionismo teísta é um melhoramento, em relação ao evolucionismo naturalista?
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA. Bavinck, Geref. Dogm. II, p.426-543; ibid., Schepping of Ontwikkeling; Kuyper, Dict, Dogm, De Crestione, p. 3-127; De Cresturis A, p. 5-54; B, p. 3-42; ibid, Evolutie; Vos, Geref. Dogm. I, De Schepping; Hodge, Syst. Theol. I p. 550-574; Shedd, Dogm. Theol. I , p. 463-526; McPherson, Chr. Dogm., p.163-174; Dabney, Syst. And Polemic Theol., p.247-274; Harris, God, Creator and Lord of All I, p. 463-518; Hepp, Calvinism and the Philosophy of Nature, Cap. V; Honig, Geref. Dogm.,p.281-324; Noordtzaij, God’s Woord en der Eeuwen Getuigenis,p. 77-98; Aalders, De Goddelijke Openbaring in de Eerste Drie Hoofdstukken van Genesis;Geesink, Van’s Heeren Ordinantien, Inleidend Deel, p. 216-332; várias obras de Darwin, Wallace, Weissman, Osborne, Spencer, Haeckel, Thompson e outros sobre o evolucionismo; Dennert, The Desthbed of Darwinism; Dawson, The Bible Confirmed by Science; Fleming, Evolution and Creation; Hamilton, The Basis of Evolutionary Faith; Johnson, Can the Christian Now Believe in Evolution? McCrady, Reason and Revelation; More, The Dogma of Evolution; Morton, The bankruptcy of Evolution; O’Toole, The case Against Evolution; Price, The Fundamentals of Geology; ibid., The Phantom of Organic Evolution; Messenger, Evolution and Theology; Rimmer, The Theory of Evolution and the Facts of Science.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

PROVIDÊNCIA

O teísmo cristão opõe-se tanto a uma deísta separação entre Deus e o mundo como a uma confusão panteísta de Deus com o mundo. Daí, a doutrina da criação é seguida imediatamente pela da providência, na qual se define claramente o conceito bíblico da relação de Deus com o mundo. Apesar de não se achar o termo “providência” na Escritura, a doutrina da providência, não obstante, é eminentemente escriturística. A palavra é derivada do termo latino providentia, que corresponde ao grego pronoia. Estas palavras significam primariamente presciência ou previsão, mas gradativamente adquiriram outros sentidos. A previsão é, de um lado, associada a planos para o futuro e, de outro, à realização concreta desses planos. Assim, a palavra “providência” veio a significar a provisão que Deus faz para os fins do Seu governo, bem como a preservação e governo de todas as suas criaturas. É este o sentido em que em geral é usada atualmente na teologia, mas não é o único sentido em que os teólogos a têm empregado. Turretino define o termo em seu sentido mais amplo, como denotando (1) presciência (pré-conhecimento), (2) predestinação (pré-ordenação), e (3) a eficaz administração das coisas decretadas. No uso geral, porém, hoje se restringe geralmente ao último sentido.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA

HISTÓRIA DA DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA. Com a sua doutrina da providência a igreja tomou posição contra a noção dos epicureus de que o mundo é governado pelo acaso, e contra a idéia estóica de que ele é governado pelo destino. Desde o início os teólogos assumiram a posição de que Deus preserva e governa o mundo. Contudo, nem sempre tiveram eles uma concepção igualmente absoluta do domínio divino sobre todas as coisas. Devido à estreita conexão em ambas, a história da doutrina da providência segue, no essencial, a da doutrina da predestinação. Os primeiros”pais da igreja”não apresentam idéias definidas sobre o assunto. Em oposição à doutrina estóica do destino e em seu desejo de proteger a santidade de Deus, às vezes eles exageravam na ênfase ao livre arbítrio do homem, e nesse ponto manifestavam a tendência de negar o absoluto governo providencial de Deus com relação às ações pecaminosas. Agostinho tomou a dianteira no desenvolvimento desta doutrina. Contra as doutrinas do destino e do acaso, ele dava ênfase ao fato de que todas as coisas são preservadas e governadas pela soberana, sábia e bondosa vontade de Deus, mas afirmava o domínio de Deus igualmente sobre o bem e sobre o mal que há no mundo. Com a defesa da realidade das causas secundárias, ele salvaguardava a santidade de Deus e mantinha a responsabilidade do homem.
Durante a Idade Média houve pouca controvérsia sobre o tema da providência divina. Nem um só concílio expressou-se sobre esta doutrina. O conceito predominante era o de Agostinho, que sujeitava tudo à vontade de Deus. Não significa, porém, que não havia idéias divergentes. O pelagianismo limitava a providência à vida natural, e excluía a vida ética. E os semipelagianos seguiam na mesma direção, conquanto nem todos fossem igualmente longe. Alguns dos escolásticos consideravam a conservação feita por Deus como uma continuação da Sua atividade criadora, enquanto outros faziam uma real distinção entre ambas. Em Tomaz de Aquino a doutrina da providência divina segue em geral a de Agostinho, e sustenta que a vontade de Deus, como determina pelas Suas perfeições, preserva e governa todas as coisas; ao passo que Duns Scotus e nominalistas como Biel e Occam declaravam que tudo depende da vontade arbitrária de Deus. Isso oi uma virtual introdução do governo do acaso.
Em geral os reformadores subscreveram a doutrina agostiniana da providência divina, embora diferissem um tanto nos pormenores. Conquanto Lutero cresse na providência geral, ele não dava ênfase à preservação e ao governo divino do mundo em geral, como o fazia Calvino. Ele considerava a doutrina primordialmente em seus suportes soteriológicos. Os socinianos e os arminianos, embora não no mesmo grau, limitavam a providência de Deus salientando o poder independente do homem de tomar a iniciativa na ação e, assim, controlar a sua vida. O domínio do mundo realmente foi tirado das mãos de Deus e dado às mãos do homem. Nos séculos dezoito e dezenove a providência foi virtualmente eliminada por um deísmo que descrevia Deus como tendo-se afastado do mundo após a obra da criação; e por um panteísmo que identificava Deus com o mundo, obliterava a distinção entre a criação e a providência e negava a realidade das causas secundárias. E embora o deísmo possa hoje ser considerado uma coisa do passado, seu conceito do domínio e direção do mundo tem continuidade na posição das ciências naturais, de que o mundo é dominado e dirigido por um férreo sistema de leis. E a teologia liberal moderna, com a sua concepção panteísta da imanência de Deus, também tende a eliminar a doutrina d providência divina.
2. A IDÉIA DA PROVIDÊNCIA. Pode-se definir a providência como o permanente exercício a energia divina, pelo qual o Criador preserva todas as Suas criaturas, opera em tudo que se passa no mundo e dirige todas as coisas para o seu determinado fim. Esta definição indica que há três elementos na providência, a saber, a preservação (conservatio, sustentatio), a concorrência ou cooperação (concursus, co-operatio), e o governo (gubernatio). Calvino, o Catecismo de Heidelberg e alguns dos dogmáticos mais recentes (Dabney, os Hodge, Dick, Shedd, McPherson) falam de dois elementos apenas, a saber, da preservação e do governo. Não quer dizer, porém, que eles queiram excluir o elemento da concorrência, mas somente que o consideram incluído nos outros dois, indicando a maneira pela qual Deus preserva e governa e mundo. McPherson parece pensar que só alguns dos grandes teólogos luteranos adotaram a divisão tríplice; mas nisto se engana, pois a referida divisão é muito comum nas obras dos dogmáticos holandeses desde o século dezessete (Mastricht, à Marck, De Moor, Brakel, Francken, Kuyper, Bavinck, Vos, Honig). Eles abandonaram a divisão mais antiga porque desejavam dar maior proeminência ao elemento da concorrência, para proteger-se dos perigos do deísmo e do panteísmo. Mas, conquanto distingamos três elementos na providência, devemos lembrar que estes três nunca estão separados, na obra de Deus. Embora a preservação se refira à existência, a concorrência à atividade e ao governo à direção de todas as coisas, jamais se deve entender isso num sentido exclusivo. Na preservação há também um elemento de governo, no governo um elemento de concurso, e no concurso em elemento de preservação. O panteísmo não distingue entre a criação e a providência, mas o teísmo acentua uma dupla distinção: (a) A criação é o chamamento à existência daquilo que antes não existia, enquanto que a providência continua ou faz continuar aquilo que já foi chamado à existência. (b) na criação não pode haver cooperação da criatura com o Criador, mas na providência concorrem a Causa primeira e causas secundárias. A Escritura sempre distingue ambas.
3. CONCEITOS ERRÔNEOS CONCERNENTES À NATUREZA DA PROVIDÊNCIA.
a. O erro de limita-la à presciência ou à presciência mais predestinação. Esta limitação acha-se nalguns dos primeiros “pais da Igreja”. Contudo, a verdade é que, quando falamos da providência de Deus, em geral não temos em mente nem Sua presciência nem a predestinação, mas simplesmente a Sua contínua atividade no mundo para a realização do Seu plano. Compreendemos que esta não pode separa-se do Seu decreto eterno, mas também percebemos que se pode e se deve distinguir entre ambos. Muitas vezes têm sido distinguidos como providência imanente e providência transeunte.
b. o conceito deísta da providência divina. Segundo o deísmo, o interesse de Deus pelo mundo não é universal, especial e perpétuo, mas tão somente de natureza geral. Ao tempo da criação, Ele infundiu em todas as Suas criaturas certas propriedades inalienáveis, colocou-as sob leis inalteráveis e deixou que cumprissem o seu destino pelos seus próprios poderes inerentes. Entrementes, Ele exerce apenas uma supervisão geral, não dos elementos específicos que aparecem em cena, mas das leis gerais que Ele estabeleceu. O mundo é uma simples máquina que Deus acionou, e de modo nenhum uma nave que Ele pilota dia após dia. Esta concepção deísta da providência é característica do pelagianismo, foi adotada por vários teólogos católicos romanos, foi esposada pelo socinianismo e foi apenas um dos erros fundamentais do arminianismo. Recebeu garbosas vestes filosóficas das mãos deístas do século dezoito e apareceu com novas formas no século dezenove, sob a influência da hipótese evolucionista e das ciências naturais, com sua forte ênfase à uniformidade da natureza como controlada por um inflexível sistema de leis férreas.
c. A idéia panteísta da providência divina. O panteísmo não reconhece a distinção que há entre Deus e o mundo. Ou faz absorver-se idealisticamente o mundo em Deus, ou materialisticamente Deus no mundo. Num ou noutro caso, não deixa lugar para a criação e também elimina a providência, no sentido próprio da palavra É verdade que os panteístas falam de providência, mas a sua providência, assim chamada, é simplesmente idêntica ao curso da natureza, e este não é nada mais nada menos que a auto-revelação de Deus, uma auto-revelação que não deixa lugar para a independente operação das causas secundárias, em qualquer sentido da palavra. Segundo este ponto de vista, o sobrenatural é impossível, ou melhor, o natural e o sobrenatural são idênticos, a consciência de livre autodeterminação do homem é uma ilusão, a responsabilidade moral é uma fantasia da imaginação, e a oração e o serviço religioso são supertições. A teologia sempre teve muito cuidado em guardar-se dos perigos do panteísmo, mas durante o século passado esse erro conseguiu entrincheirar-se em muita teologia liberal moderna com disfarce da doutrina da imanência de Deus.
4. OBJETOS DA PROVIDÊNCIA DIVINA.
a. Os ensinamentos da Escritura sobre este ponto. A Bíblia ensina claramente o governo providencial de Deus (1) sobre o universo em geral, Sl 103.19; Dn 5.35; Ef 1.11; (2) sobre o mundo físico, Jó 37.5; Sl 104.14; 135.6; Mt 5.45; (3) sobre a criação inferior, Sl 104.21, 28; Mt 6.26; 10.29; (4) sobre os negócios das nações, Jó 12.23; Sl 22.28; 66.7; At 17.26; (5) sobre o nascimento do homem e sua sorte na vida, 1 Sm 16.1; Sl 139. 16; Is 45.5; Gl 1.15, 16; (6) sobre as vitórias e fracassos que sobrevêm às vidas dos homens, Sl 75.6, 7; Lc 1.52; (7) sobre coisas aparentemente acidentais ou insignificantes, Pv 16.33; Mt 10.30; (8) na proteção dos justos, Sl 4.8; 5.12; 63.8; 121.3; Rm 8.23; (9) no suprimento das necessidades do povo de Deus, Gn 22.8, 14; Dt 8.3; Fp 4.19; (10) nas respostas à oração, 1 Sm 1.19; Is 20.5, 6; 2 Cr 33.13; Sl 65.2; Mt 7.7; Lc 18.7, 8; e (11) no desmascaramento e castigo dos ímpios, Sl 7.12, 13; 11.6.
b. Providência geral e especial. Geralmente os teólogos distinguem entre providência geral e especial, a primeira indicando o governo de Deus sobre o universo todo, e a última, Seu cuidado de cada parte dele em relação ao todo. Não são duas espécies de providência, mas a mesma providência exercida em duas diferentes relações. Contudo, a expressão “providência especial” pode ter uma conotação mais específica, e nalguns casos se refere ao cuidado especial de Deus por Suas criaturas racionais. Alguns falam até mesmo de uma providência muito especial (providentia especialissima), com referência aos que estão na relação especial de filiação a Deus. Providências especiais são combinações especiais feitas na ordem dos eventos, como na resposta à oração, na libertação de dificuldades, e em todos os casos em que a graça e o socorro vêm, em circunstâncias críticas.
c. negação da providência especial. Há os que estão dispostos a admitir uma providência geral, uma administração do mundo sob um sistema fixo de leis gerais, mas negam que haja também uma providência especial segundo a qual Deus se interessa pelos pormenores da história, pelos assuntos da vida humana e particularmente pelas experiências dos justos. Alguns afirmam que Deus é grande demais para interessar-se pelas coisas menores da vida, enquanto outros sustentam que Ele simplesmente não pode faze-lo, desde que as leis da natureza Lhe amarram as mãos e, daí, sorriem significativamente quando ouvem dizer que Deus responde as orações. Agora, não há necessidade de negar a ralação da providência especial com as leis uniformes da natureza constitui um problema. Ao mesmo tempo, é preciso dizer que envolve um conceito muito pobre, superficial e antibíblico de Deus afirmar que Ele se interessa nem pode interessar-se pelos pormenores da vida, não pode responder as orações, nem prestar ajuda em emergências, nem interferir miraculosamente em favor do homem. Um governante que apenas baixasse certos princípios gerais e não desse atenção a particularidades, ou um homem de negócio que não examinasse os pormenores do seu negócio, logo estaria arruinado. A Bíblia ensina que mesmo as menores minúcias da vida pertencem à ordenação de Deus. Em conexão com a questão, se podemos harmonizar a operação das leis gerais da natureza com a providência geral, só podemos indicar o seguinte: (1) As leis da natureza não devem ser descritas como poderes da natureza a governarem absolutamente todos os fenômenos e operações. Elas na verdade não são mais que a descrição humana, por vezes deficiente, da uniformidade na variedade descoberta no modo pelo qual operam as forças da natureza. (2) A concepção materialista das leis da natureza como um sistema entrelaçado e fechado, agindo independentemente de Deus e realmente O impossibilitando de intervir no curso do mundo, é absolutamente errônea. O universo tem uma base pessoal. E a uniformidade da natureza é simplesmente o método ordenado por um ser pessoal em ação. (3) As leis da natureza, assim chamadas, só produzem os mesmos efeitos se todas as condições são as mesmas. Geralmente os efeitos não são resultados de uma força única, mas de uma combinação de forças naturais. Até um homem pode variar os efeitos combinando uma força da natureza com outra ou outras forças, e entretanto cada uma destas forças opera em estrita harmonia com suas leis. E se isto é possível para o homem, é infinitamente mais possível para Deus. Com todos os tipos de combinação, Ele pode levar a efeito os mais variados resultados.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

DOUTRINA DA PRESERVAÇÃO DE TODAS AS COISAS

1. BASE DA DOUTRINA DA PRESERVAÇÃO. A prova da doutrina da preservação é direta e por dedução.
a. Prova direta. A divina preservação de todas as coisas é clara e explicitamente ensinada em diversas passagens da Escritura. As seguintes passagens são apenas algumas das muitas que poderiam ser mencionadas: Dt 33.12, 25-28; 1 Sm 2.9; Ne 9.6; Sl 107.9; 127.1; 145.14, 15; Mt 10.29; At 7.28; Cl 1.17; Hb 1.3. Muito numerosas são as passagens que falam do Senhor preservando o Seu povo. Exemplos: Gn 28.15; 49.24; ex 14.29, 30; Dt 1.30, 31; 2 Cr 20.15, 17; Jó 1,10; 36.7; Sl 31.20; 32.6; 34.15, 17; 37.15, 17, 19, 20; 91.1, 3, 4, 7, 9, 10, 14; 121.3, 4, 7, 8; 125.1, 2; Is 40.11; 43.2; 63.9; Jr 30.7, 8, 11; Ez 34.11, 12, 15, 16; Dn 12.1; Zc 2.5: Lc 21.18; 1 Co 10.13; 1 Pe 3.12; Ap 3.10.
b. Prova por dedução. A idéia da preservação divina interfere-se da doutrina da soberania de Deus. Esta só se pode conceber como absoluta; não seria absoluta, porém, se existisse ou acontecesse alguma coisa independentemente da Sua vontade. Só pode ser sustentada com a condição de que todo o universo e tudo que nele há é em seu ser e em sua ação absolutamente dependente de Deus. Infere-se também do caráter dependente da criatura. Uma característica de tudo quanto é criatura é que não pode permanecer existindo em virtude do seu poder inerente. O fundamento do seu ser e da continuidade da sua existência é a vontade do seu Criador. Somente Aquele que criou o mundo pela palavra do Seu poder, pode sustentá-lo por Sua onipotência.
2. O CORRETO CONCEITO DA PRESERVAÇÃO DIVINA. A doutrina da preservação parte do pressuposto de que todas as substâncias criadas, quer espirituais quer materiais, têm existência real e permanente, distinta da existência de Deus, e só possuem propriedades ativas e passivas derivadas de Deus; e de que os seus ativos têm eficiência real, e não meramente aparente, como causas secundárias, de modo que podem produzir os efeitos que lhe são próprios. Assim, a doutrina protege-se do panteísmo, com a sua idéia de uma criação contínua, que virtualmente, se nem sempre expressamente, nega a existência distinta do mundo e faz de Deus o único agente do universo. Mas não considera essas substâncias criadas como auto-existentes, desde que a auto-existência é propriedade exclusiva de Deus, e todas as criaturas têm o fundamento da sua existência continuada nele, e não em si mesmas. Daí, segue-se que continuam a existir, e não em virtude de um ato meramente negativo de Deus, mas em virtude do exercício positivo e contínuo do poder divino. O poder de Deus acionado para a sustentação de todas as coisas é tão positivo como o poder exercido na criação. A precisa natureza da Sua obra na sustentação de todas as coisas, tanto no ser como no agir é um mistério, embora se possa dizer que, em Suas operações providenciais, Ele se acomoda à natureza das Suas criaturas. Dizemos com Shedd: “No mundo material, Deus age imediatamente nas propriedades e leis materiais e por meio delas. A preservação jamais contra a criação. Deus não viola na providência o que estabeleceu na criação”. A preservação pode ser definida como a obra contínua de Deus pela qual Ele mantém as coisas que criou, juntamente com as propriedades e poderes de que as dotou.
3. CONCEITOS ERRÔNEOS DA PRESERVAÇÃO DIVINA. A natureza desta obra de Deus nem sempre é compreendida acertadamente. Há duas maneiras de vê-la que devem ser evitadas: (a) Que é puramente negativa. Segundo o deísmo, a preservação divina consiste nisto: que Deus não destrói a obra das Suas mãos. Em virtude da criação, Deus dotou a matéria de certas propriedades, colocou-a sob leis inalteráveis e depois a deixou mover-se por si mesma, independentemente de todo suporte ou direção de fora. Esta é uma representação irracional, irreligiosa e antibíblica. É irracional porque implica que Deus comunicou auto-subsistência à criatura, quando a auto-existência e auto-sustentação são propriedades incomunicáveis, que caracterizam unicamente o Criador. A criatura jamais pode ser auto-sustentadora, mas precisa ser mantida dia a dia pelo poder absoluto do Criador. Daí, não se exigiria um ato positivo de onipotência da parte de Deus para aniquilar existências criadas. Uma simples retirada de suporte naturalmente redundaria em destruição. – Este conceito é irreligioso porque afasta Deus para Tão longe da Sua criação que a comunhão com Ele vem a ser uma impossibilidade prática. A história atesta claramente o fato de que ele invariavelmente quer a morte da religião. – Também é antibíblico, visto que pretende colocar Deus totalmente fora da Sua criação, ao passo que a Bíblia nos ensina em muitas passagens que Ele não é somente transcendente, mas também é imanente nas obras das Suas mãos. (b) Que é uma criação contínua. O panteísmo descreve a preservação como uma criação contínua, de modo que as criaturas ou causas secundárias são entendidas como não tendo existência real ou contínua, mas como emanando em cada momento sucessivo daquele misterioso Absoluto que é a base oculta de todas as coisas. Alguns não panteístas tinham uma idéia parecida da preservação. Descartes lançou as bases para essa concepção, e Malebranche a levou para o mais distante extremo coerente com o teísmo. Até Jonathan Edwards a ensina incidentalmente em sua obra sobre o pecado Original, e assim, perigosamente, quase chega a ensinar panteísmo. Esse modo de entender a preservação não dá lugar às causa secundárias e, portanto, leva necessariamente ao panteísmo. É contrário às nossas intuições originais e necessárias, que nos asseguram que somos causas de ação reais e auto-determinantes e, conseqüentemente, agentes morais. Além disso, fere a raiz mesma da ação livre, da responsabilidade moral, do governo moral e, portanto, da própria religião. Alguns teólogos reformados (calvinistas) também empregam a expressão “criação contínua”, mas com isso não ensinam a errônea doutrina que estamos focalizando. Desejam simplesmente acentuar o fato de que o mundo é mantido pelo mesmo poder que o criou. Em vista do fato de que a expressão está sujeita a ser mal entendida, é melhor evitá-la.

(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

A IDÉIA DA CONCORRÊNCIA DIVINA E SUA PROVA BÍBLICA

a. Definição e explicação. Pode-se definir a concorrência como a cooperação do poder divino com todos os poderes subordinados, em harmonia com as leis pré-estabelecidas de sua operação, fazendo-os agir precisamente como agem. Alguns tendem a limitar a operação da concorrência, no que se refere ao homem, às ações humanas moralmente boas e, portanto, recomendáveis; outros, mais logicamente, estendem-na ações de toda sorte. Deve-se notar logo de início que esta doutrina implica duas coisas: (1) Que as forças da natureza não agem por si mesmas, isto é, simplesmente por seu próprio poder inerente, mas Deus exerce operação imediata em cada ato da criatura. Deve-se sustentar esta verdade em oposição à posição deísta. (2) Que as causas secundárias são reais, e não devem ser consideradas apenas como o poder operativo e Deus. É só com a condição de que as causas secundárias sejam reais que podemos falar com propriedade de uma concorrência ou cooperação da Causa Primeira com as causas secundárias. Deve-se dar ênfase a isto, contra a idéia panteísta de que Deus é o único agente em ação no mundo.
b. prova bíblica da concorrência divina. A Bíblia ensina claramente que a providência de Deus pertence, não somente à existência, mas também às ações ou operações da criatura. A verdade geral de que os homens não agem independentemente, mas são governados pela vontade de Deus, transparece em diversas passagens da Escritura. Em Gn 45.5 diz José que foi Deus, e não seus irmãos, que o enviara para o Egito. Em Ex. 4.11, 12 diz o Senhor que Ele será com a boca de Moisés e lhe ensinará o que dizer; e em Js 11.6 Ele dá a Josué a certeza de que o livrará dos inimigos de Israel. Provérbios 21.1 ensina-nos que “assim é o coração do rei na mão do Senhor; este segundo o seu quere, o inclina”; e Esdras 6.22, que o Senhor tinha mudado “o coração do rei da Assíria” para com Israel. Em Dt 8.18 traz-se à memória de Israel o fato de que foi Jeová que lhe deu capacidade para conseguir riqueza. Mais particularmente, a escritura evidencia também que há uma espécie de cooperação divina naquilo que é mau. Conforme 2 Sm 16.11, Jeová mandou Simei amaldiçoar a Davi. Também o Senhor chama à Assíria “cetro da minha ira”, e diz: “A vara em sua mão é o instrumento do meu furo”, Is 10.5. Além disso, Ele pôs um espírito mentiroso na boca dos profetas de Acabe, 1 Rs 22.20-23.
2. ERROS QUE DEVEM DER EVITADOS. Há vários erros contra os quais devemos guardar-nos, em conexão com esta doutrina.
a. Que ela consiste meramente numa comunicação geral de poder, sem determinar de forma alguma a ação específica. Os jesuítas, os socinianos e os arminianos sustentam que a concorrência divina é apenas uma cooperação geral e indiferente, de modo que é a causa secundária que dirige a ação ao seu fim particular. Essa cooperação é igualmente comum a todas as causas, estimulando-as à ação, mas de modo inteiramente indeterminado. Embora ative a causa secundária, deixa que esta determine o seu particular tipo e modo de ação. Fosse. Porém, esta situação, estaria no poder do homem frustrar o plano de Deus, e a causa primeira seria subserviente à causa secundária. O homem estaria de posse do governo, e não haveria providência divina.
b. Que é de natureza tal, que o homem realiza parte da obra, e Deus realiza também uma parte dela. Às vezes se descreve a cooperação de Deus e o homem como se fosse algo como os esforços conjuntos de um grupo de cavalos tirando juntos, cada qual fazendo a sua parte. Esta é uma visão equívoca da distribuição da obra. De fato, cada realização é, em sua inteireza, tanto uma realização de Deus como da criatura. É uma realização de Deus no sentido de que não há nada que independa da vontade divina, e no sentido de que é determinada, momento a momento, pela vontade de Deus. E é uma realização do homem no sentido de que Deus a leva a efeito por meio da atividade própria da criatura. Há uma interpretação aí, mas nenhuma limitação mútua.
c. Que a obra de Deus e a da criatura, na concorrência, são coordenadas. Isto já está excluído, pelo que foi dito no item anterior. A obra de Deus sempre tem prioridade, pois o homem depende de Deus em tudo que faz. A afirmação de Cristo na Escritura: “sem mim nada podeis fazer” aplica-se em todos os campos do esforço humano. A relação exata de ambos fica mais bem demonstrada nas seguintes características da concorrência divina.
3. CARACTERÍSTICAS DA CONCORRÊNCIA DIVINA.
a. É prévia e predeterminante, não num sentido temporal, mas, sim, num sentido lógico. Na criatura não há nenhum princípio de atividade autônoma à qual simplesmente juntasse a Sua atividade. Em cada caso, o impulso para a ação e movimento procede de Deus. Tem que haver uma influência da energia divina antes de poder agir a criatura. Deve-se notar particularmente que esta influência não termina na atividade da criatura, mas na criatura mesma. Tudo que há na natureza Deus faz agir e mover-se na direção de um fim predeterminado. Assim, Deus capacita e ajuda as Suas criaturas racionais, como causas secundárias, a funcionar, e isso não apenas dotando-as de energia, de maneira geral, mas dando-lhes energia para certos atos específicos. Ele opera tudo em todos, 1 Co 12.6, e também neste caso, opera tudo conforme o conselho da sua vontade, Ef 1.11. Ele deu a Israel a capacidade de obter riqueza, Dt 8.18, e opera nos crentes tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade, Fp 2.13. Os pelagianos e semipelagianos de todo tipo geralmente se dispõem a admitir que a criatura não pode agir sem um influxo do poder divino, mas sustentam que este não é tão específico que chegue a determinar o caráter da ação de algum modo.
b. É também uma concorrência simultânea. Depois de iniciada a atividade da criatura, a vontade eficaz de Deus terá que acompanha-la a todo momento, se é que a referida atividade deva continuar. Não há um só momento em que a criatura aja independentemente da vontade e do poder de Deus. É só nele que vivemos e nos movemos e existimos, At 17.28. Esta atividade divina acompanha a acaso do homem em todo e qualquer ponto, mas sem privar o homem, um ato pelo qual ele é responsabilizado. Esta concorrência simultânea não redunda numa identificação da causa prima com a causa secunda Num sentido muito real, a operação é o produto de ambas as causas. O homem é e continua sendo o verdadeiro sujeito da ação. Bavinck ilustra isto indicando o fato de que a madeira queima, que somente Deus a faz queimar, mas que formalmente esta queima não pode ser atribuída a Deus, mas unicamente à madeira como sujeito da ação de queimar. É evidente que esta ação simultânea não pode ser separada da concorrência prévia e determinante, mas deve ser distinguida dela. Estritamente falando, diversamente da concorrência prévia, a ação simultânea termina, não na criatura, mas em sua atividade. Desde que não termina na criatura, pode, no abstrato, ser interpretada como não tendo quaisquer suportes éticos. Isto explica por que alguns teólogos reformados (calvinistas) limitavam a concorrência prévia às boas ações dos homens, e quanto ao restante, contentavam-se em ensinar uma concordância simultânea.
c. Finalmente, é uma concorrência imediata. Em seu governo do mundo, Deus emprega toda sorte de meios para a consecução dos Seus fins; mas não opera deste modo na concorrência divina. Quando destruiu com fogo as cidades da planície, praticou um ato de governo divino sem empregar meios ativos. Mas, ao mesmo tempo, esse ato constituiu Sua concorrência imediata, pela qual habilitou o fogo a cair, queimar e destruir. Assim, também Deus opera no homem, dotando-o de poder, determinando as suas ações e sustentando as suas atividades o tempo todo.
4. A CONCORRÊNCIA DIVINA E O PECADO. Os pelagianos, os semipelagianos e os arminianos levantam séria objeção a esta doutrina da providência. Sustentam eles que uma concorrência prévia, que não seja meramente geral, mas que predetermine o homem a ações específicas, faz de Deus o autor do pecado, por este responsável. Os teólogos reformados (calvinistas) estão bem cientes da dificuldade que aqui se apresenta, mas não se sentem livres para iludi-la negando o absoluto domínio de Deus sobre as livres ações das Suas criaturas morais, visto que a Escritura o ensina claramente, Gn 45.5; 50.19, 20; Êx 10.1, 20; 2 Sm 16.10, 11; Is 10. 5-7; At 2.23; 4.27, 28. Eles se sentem constrangidos a ensinar: (a) que os atos pecaminosos estão sob o governo divino e ocorrem de acordo com a predeterminação e o propósito de Deus, mas somente pela permissão divina, de modo que Ele não leva eficientemente os homens a pecarem, Gn 45.5; 50.20; Êx 14.17; Is 66.4; Rm 9.22; 2 Ts 2.11; (b) que Deus muitas vezes reprime as obras pecaminosas do pecador, Gn 3.6; Jó 1.12; 2.6; Sl 76.10; Is 10.15; At 7.51; e (c) que Deus, no interesse do Seu propósito, dirige o mal para o bem, Gn 50.20; Sl 76.10; At 3.13.
Não significa, porém, que todos eles concordam na resposta à questão, se há uma direta, imediata dinamização do poder ativo da criatura, dispondo-a e predeterminando-a eficazmente ao ato específico, e também capacitando-a para praticar aquele ato. Dabney, por exemplo, embora admitindo uma concorrência física na criação inferior, nega-a com relação aos agentes livres. Contudo, a grande maioria a defende também no caso dos seres morais livres. Mesmo Dabney concorda que o governo de Deus sobre todos os atos das Suas criaturas é certo, soberano e eficaz; e, daí, ele tem que enfrentar, juntamente com todos os demais, a questão quanto à responsabilidade de Deus pelo pecado. Dá ele sua conclusão coma seguintes palavras: “É esta, pois, a minha descrição da evolução do propósito de Deus quanto aos atos pecaminosos; de tal modo dispõe e agrupa eventos e objetos em torno de agentes livres por Sua multiforme sabedoria e poder, que cada alma, em cada fase, é posta na presença das circunstâncias que, Ele sabe, serão um induzimento suficiente para que ela se realize, por sua própria atividade natural e livre, exatamente aquilo que se chama plano de Deus. Assim, o ato é somente do homem, conquanto a sua ocorrência seja eficazmente assegurada por Deus. E o pecado é somente do homem. O interesse de Deus pelo pecado é santo, primeiro, porque toda a Sua ação pessoal nos acertos para assegurar a sua ocorrência foi santa; e segundo, os Seus fins e propósitos são santos. Deus não quer o pecado do ato por sua pecaminosidade; mas somente quer o resultado para o qual o pecado é apenas um meio, e esse resultado é sempre digno da Sua santidade”. Contudo, a imensa maioria dos teólogos reformados (calvinistas) sustenta o concurso em questão, e busca a solução da dificuldade fazendo distinção entre a matéria e a forma* do ato pecaminoso, e atribuindo a última exclusivamente ao homem. O concurso divino dinamiza o homem e o determina eficazmente ao ato específico, mas é o homem que dá ao ato a sua qualidade formal e que, portanto, é responsável por seu caráter pecaminoso. De nenhuma destas soluções se pode dizer que satisfaz inteiram,ente, de modo que o problema da relação de Deus com o pecado continua sendo um mistério.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

O GOVERNO DE DEUS

1. NATUREZA DO GOVERNO DIVINO. Pode-se definir o governo divino como a continua atividade de Deus pela qual Ele rege todas as coisas teleologicamente a fim de garantir a realização do propósito divino. Este governo não é uma simples parte da providencia divina, mas, como no caso da preservação e da concorrência, é toda ela, mas agora considera sob o ponto de vista do fim para o qual Deus guia todas as coisas da criação, a saber, a gloria do Seu nome.
a. É o governo de Deus como o Rei do universo. Nos dias presentes muitos consideram a idéia de Deus como Rei uma noção antiquada do Velho Testamento, e a querem substituir pela idéia neotestamentária de Deus como Pai. A idéia da soberania divina deve dar lugar à do amor divino. Julgar-se que esta se harmoniza com a idéia progressiva de Deus na Escritura. Mas é um erro pensar que a revelação divina, conforme se eleva a níveis mais altos, tenciona fazer com que nos desapeguemos aos poucos da idéia de Deus como de Deus como Rei e a substituamos pela idéia de Deus como Pai. Já vai contra isso a proeminência da idéia do reino de Deus nos ensinos de Jesus. E se se disser que isto envolve apenas a idéia de uma especial e limitada realeza de Deus, pode-se replicar que a idéia da paternidade de Deus nos evangelhos está sujeita às mesmas restrições e limitações. Jesus não ensina uma paternidade universal de Deus. Além disso, o Novo Testamento também ensina a realeza universal de Deus em passagens como Mt 11.25; At 17.24; 1 Tm 1.17; 6.15; Ap 1.6; 19.6. Ele é igualmente Rei e Pai, e é a fonte de toda autoridade no céu e na terra, o Rei dos reis e Senhor dos senhores.
b. É um governo adaptado à natureza das criaturas que Ele governa. No mundo físico Ele estabeleceu as leis da natureza, e é por meio dessas leis que Ele exerce o governo do universo físico. No mundo mental Ele exerce o Seu governo mediatamente, por meio das propriedades e leis da mente, e imediatamente, pela direta operação do Espírito Santo. No governo e domínio dos agentes morais Ele faz uso de toda classe de influência moral, como as circunstâncias, os motivos, a instrução, a persuasão e o exemplo, mas também age diretamente, pela operação pessoal do Espírito Santo no intelecto, na vontade e no coração.
2. A EXTENSÃO DESTE GOVERNO. A Escritura declara explicitamente que este governo divino é universal, Sl 22.28, 29; 103.17-19; Dn 4.34, 35; 1 Tm 6.15. É realmente a execução do Seu propósito eterno, abrangendo todas as Suas obras, desde o princípio, tudo que foi, é e será para sempre. Mas, embora geral, desce também a particularidades. As coisas de maior significação, Mt 10.29-31, aquilo que é aparentemente acidental, Pv 16.33, as boas ações dos homens, Fp 2.13, como também as suas más ações, At 14.16 – tudo está sob o governo e direção de Deus. Deus é o Rei de Israel, Is 33.22, mas Ele também domina entre as nações, Sl 47.9. nada pode escapar ao Seu governo.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

Providências Extraordinárias ou Milagres

1. NATUREZA DOS MILAGRES. Usualmente se faz distinção entre providentia ordinária e providentia extraordinária. Na primeira, Deus age por meio de causas secundárias em estrito acordo com as leis da natureza, embora possam variar os resultados, com diferentes combinações. Mas na última Ele age imediatamente ou sem a mediação de causa secundárias, em sua operação ordinária. Diz Mcpherson: “Milagres é uma coisa feita sem se recorrer aos meios ordinários de produção, um resultado produzido diretamente pela Causa Primeira, sem a mediação, pelo menos do modo habitual, das causas secundárias”. A coisa distintamente característica do feito miraculoso é que ele resulta do exercício do poder sobrenatural de Deus. E, naturalmente, isto significa que o referido feito não é ocasionado por causas secundárias que operam segundo as leis da natureza. Se fosse, não seria sobrenatural (acima da natureza), isto é, não seria milagre. Se Deus, na realização de um milagre, algumas vezes utilizou forças que estavam presentes na natureza, utilizou-as de maneira inteiramente distantes do ordinário, para produzir resultados não esperados pelo homem, e foi justamente isso que constitui o milagre. Todo milagre está acima da ordem estabelecida da natureza, mas podemos distinguir diferentes classes, conquanto não graus, de milagres. Há milagres que estão absolutamente acima da natureza, de modo que não estão ligados, de modo algum, a quaisquer meios. Mas também há milagres que são contra media, nos quais os meios são empregados, mas de modo tal, que o resultado é uma coisa completamente diversa do resultado habitual daqueles meios.
2. POSSIBILIDADE DE MILAGRES. Há objeções aos milagres, principalmente com base em que eles implicam uma violação das leis da natureza. Alguns procuram fugir à dificuldade presumindo, com Agostinho, que eles são simples exceções da natureza, como a conhecemos, implicando que, se tivéssemos um conhecimento mais completo da natureza, poderíamos explica-los de maneira perfeitamente natural. Mas esta posição é insustentável, desde que pressupõe duas ordens da natureza, mutuamente contrárias. Conforme a primeira, o azeite de botija diminuiria, mas conforme a outra, não diminui; conforme a primeira, os pães foram consumidos gradativamente, mas conforme a outra, multiplicaram-se. É preciso supor, ademais, que um sistema é superior ao outro, pois, se não fosse, haveria tão somente uma colisão e nada resultaria; mas, se o fosse, o que parece é que a ordem inferior aos poucos seria dominada e desapareceria. Além disso, esse conceito priva o milagre do seu caráter excepcional, sendo que os milagres mostram-se como eventos excepcionais da Escritura.
Há sem dúvida, uma certa uniformidade na natureza; há leis que governam a operação das causas secundárias no mundo físico. Lembremo-nos, porém, de que elas representam meramente o método usual pelo qual Deus age na natureza. É Sua boa vontade agir de maneira ordenada e por intermédio de causas secundárias. Mas isto não significa que Ele não possa deixar de lado a ordem estabelecida, e não possa produzir um efeito extraordinário, que não resulte de causa naturais, por um ato único de volição, se o julgar desejável para o fim em vista. Quando Deus opera milagres, produz efeitos extraordinários de maneira extraordinária. Quer dizer que os milagres estão acima da natureza. Diríamos também que são contrários à natureza? Houve teólogos reformados (calvinistas) mais antigos que não hesitavam em falar deles como uma ruptura ou uma violação das leis da natureza. Às vezes diziam que, ocorrendo um milagre, a ordem da natureza era suspensa temporariamente, O dr. Bruin acha correta essa maneira dever, e o afirma em sua obra intitulada Het Christelijk Geloof em de Beoefening der Natuurwetenschap, e faz objeção às idéias de Woltjer, Dennert e Bavinck. Mas o acerto dessa terminologia mais antiga pode muito bem ser posta em dúvida. Quando se realiza um milagre, as leis da natureza não são violadas, mas são superadas num determinado ponto por uma superior manifestação da vontade de Deus. As forças da natureza não são anuladas ou suspensas, mas são apenas neutralizadas, num ponto particular, por um poder superior a elas.
3. PROPÓSITO DOS MILAGRES DA ESCRITURA. Pode-se presumir que os milagres da Escritura não foram realizados arbitrariamente, mas, sim, com um propósito definido. Não são meras maravilhas e exibições de poder, destinadas a provocar admiração, mas têm significação revelacional. A entrada do pecado no mundo torna necessária a intervenção sobrenatural de Deus no curso dos eventos, para a destruição do pecado e para a renovação da criação. Foi mediante milagre que Deus nos deu a Sua revelação especial e verbal na escritura, bem como a Sua revelação suprema e fatual em Jesus Cristo. Os milagres estão relacionados com a economia da redenção, uma redenção que com freqüência eles prefiguram e simbolizam. Não visam a uma violação, mas, antes, a uma restauração da obra criadora de Deus. Daí, vemos ciclos de milagres ligados a períodos especiais da história da redenção, e especialmente durante a época do ministério público de Cristo e da fundação da igreja. Estes milagres ainda não resultaram na restauração do universo físico. Mas, no fim dos tempos, haverá outra série de milagres, que redundarão na renovação da natureza, para a glória de Deus – o estabelecimento final do reino de Deus em novo céu e nova terra.
QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. A doutrina da providência é um articulus purus ou um articulus mixtus? 2. qual foi o primeiro “pai da igreja” a desenvolver esta doutrina? 3. Como diferem Lutero e Calvino, em sua concepção da providência divina? 4. O que explica o fato de que os arminianos aceitam a posição dos socinianos sobre este ponto? 5. Como devemos julgar a asserção de alguns teólogos reformados (calvinistas) de que Deus é a causa única a atuar no mundo? 6. Que são as causas secundárias, e por que é importante sustentar que são causa reais? 7. A doutrina do concurso divino é antagônica à livre ação do homem? 8. Qual a concepção agostiniana dos milagres? 9. Por que é importante afirmar a realidade do miraculoso? 10. Os milagres admitem uma explicação natural? 11. Implicam eles uma suspensão das leis da natureza? 12. Qual a significação especial dos milagres da Bíblia? 13. Poderiam acontecer milagres hoje? 14. Acontecem de fato? 15. que quer dizer dos milagres da Igreja Católica Romana?
BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm. II, p.635-670; Kuyper, Dict. Dogm., De Providentia, p.3-246; Vos, Geref. Dogm. I, De Voorzienigheid; Hodge, Syst. Theol. I, p. 575-636; Shedd, Dogm. Theol. I, p. 527-545; Dabney, Syst. and Polem. Theol., p.276-291; McPherson, Chr. Dogm., p. 174-184; Drummond. Studies in Chr. Doct., p. 187-202; Pope, Chr. Theol. I, p. 437-456; Raymond, Syst. Theol. I, p. 497-527; Valentine, Chr. Theol., p. 363-382; Pieper, Christl. Dogm. I, p. 587-600; Schmidt. Doct. Theol. Of the Ev. Luth. Church, p. 179-201; Dijk, De Voorzienigheid Gods; Mozley, On Miracles; Thomson, The Christian Miracles and the Conclusions of Science; Mead, Supernatural Revelation; Harris, God, Creator and Lord of All, I, p. 519-579; Bruin, Het Christelijke Geloof en de Beoefening der Natuurwetensschap, p. 108-138.
(Teologia Sistemática - Louis Berkhof)

sábado, 25 de agosto de 2012

DEUS, PROSPERIDADE E TRABALHO

Rev. Augustus Nicodemus Lopes
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A prosperidade financeira obedece a normas, regras e métodos estabelecidos. Por outro lado, da perspectiva bíblica, a prosperidade é um dom de Deus. É ele quem concede saúde, oportunidades, inteligência, e tudo o mais que é necessário para o sucesso financeiro. E isso, sem distinção de pessoas quanto ao que crêem e quanto ao que contribuem financeiramente para as comunidades às quais pertencem. Deus faz com que a chuva caia e o sol nasça para todos, justos e injustos, crentes e descrentes, conforme Jesus ensinou (Mateus 5:45). Não é possível, de acordo com a tradição reformada, estabelecer uma relação constante de causa e efeito entre contribuições, pagamento de dízimos e ofertas e mesmo a religiosidade, com a prosperidade financeira. Várias passagens da Bíblia ensinam os crentes a não terem inveja dos ímpios que prosperam, pois cedo ou tarde haverão de ser punidos por suas impiedades, aqui ou no mundo vindouro.

Através dos séculos, as religiões vêm pregando que existe uma relação entre Deus e a prosperidade material das pessoas. No Antigo Oriente, as religiões consideradas pagãs estabeleceram milênios atrás um sistema de culto às suas divindades que se baseava nos ciclos das estações do ano, na busca do favor dessas divindades mediante sacrifícios de vários tipos e na manifestação da aceitação divina mediante as chuvas e as vitórias nas guerras. A prosperidade da nação e dos indivíduos era vista como favor dos deuses, favor esse que era obtido por meio dos sacrifícios, inclusive humanos, como os oferecidos ao deus Moloque. No Egito antigo a divindade e poder de Faraó eram mensurados pelas cheias do Nilo. As religiões gregas, da mesma forma, associavam a prosperidade material ao favor dos deuses, embora estes fossem caprichosos e imprevisíveis. As oferendas e sacrifícios lhes eram oferecidas em templos espalhados pelas principais cidades espalhadas pela bacia do Mediterrâneo, onde também haviam templos erigidos ao imperador romano, cultuado como deus.

A religião dos judeus no período antes de Cristo, baseada no Antigo Testamento, também incluía essa relação entre a ação divina e a prosperidade de Israel. Tal relação era entendida como um dos termos da aliança entre Deus e Abraão e sua descendência. Na aliança, Deus prometia, entre outras coisas, abençoar a nação e seus indivíduos com colheitas abundantes, ausência de pragas, chuvas no tempo certo, saúde e vitória contra os inimigos. Essas coisas eram vistas como alguns dos sinais e evidências do favor de Deus e como testes da dependência dele. Todavia, elas eram condicionadas à obediência e só viriam caso Israel andasse nos seus mandamentos, preceitos, leis e estatutos. Estes incluíam a entrega de sacrifícios de animais e ofertas de vários tipos, a fidelidade exclusiva a Deus como único Deus verdadeiro, uma vida moral de acordo com os padrões revelados e a prática do amor ao próximo. A falha em cumprir com os termos da aliança acarretava a suspensão dessas bênçãos. Contudo, a inclusão na aliança, o favor de Deus e a concessão das bênçãos não eram vistos como meritórios, mas como favor gracioso de Deus que soberanamente havia escolhido Israel como seu povo especial.

O Cristianismo, mesmo se entendendo como a extensão dessa aliança de Deus com Abraão, o pai da fé, deu outro enfoque ao papel da prosperidade na relação com Deus. Para os primeiros cristãos, a evidência do favor de Deus não eram necessariamente as bênçãos materiais, mas a capacidade de crer em Jesus de Nazaré como o Cristo, a mudança do coração e da vida, a certeza de que haviam sido perdoados de seus pecados, o privilégio de participar da Igreja e, acima de tudo, o dom do Espírito Santo, enviado pelo próprio Deus ao coração dos que criam. A exultação com as realidades espirituais da nova era que raiou com a vinda de Cristo e a esperança apocalíptica do mundo vindouro fizeram recuar para os bastidores o foco na felicidade terrena temporal, trazida pelas riquezas e pela prosperidade, até porque o próprio Jesus era pobre, bem como os seus apóstolos e os primeiros cristãos, constituídos na maior parte de órfãos, viúvas, soldados, diaristas, pequenos comerciantes e lavradores. Havia exceções, mas poucas. Os primeiros cristãos, seguindo o ensino de Jesus, se viam como peregrinos e forasteiros nesse mundo. O foco era nos tesouros do céu.

A Idade Média viu a cristandade passar por uma mudança nesse ponto (e em muitos outros). A pobreza quase virou sacramento, ao se tornar um dos votos dos monges, apesar de Jesus Cristo e os apóstolos terem condenado o apego às riquezas e não as riquezas em si. Ao mesmo tempo, e de maneira contraditória, a Igreja medieval passou a vender por dinheiro as indulgências, os famosos perdões emitidos pelo papa (como aqueles que fizeram voto de pobreza poderiam comprá-los?). Aquilo que Jesus e os apóstolos disseram que era um favor imerecido de Deus, fruto de sua graça, virou objeto de compra. Milhares de pessoas compraram as indulgências, pensando garantir para si e para familiares mortos o perdão de Deus para pecados passados, presentes e futuros.

A Reforma protestante, nascida em reação à venda das indulgências, entre outras razões, reafirmou o ensino bíblico de que o homem nada tem e nada pode fazer para obter o favor de Deus. Ele soberana e graciosamente o concede ao pecador arrependido que crê em Jesus Cristo, e nele somente. A justificação do pecador é pela fé, sem obras de justiça, afirmaram Lutero, Calvino, Zwinglio e todos os demais líderes da Reforma. Diante disso, resgatou-se o conceito de que o favor de Deus não se pode mensurar pelas dádivas terrenas, mas sim pelo dom do Espírito e pela fé salvadora, que eram dados somente aos eleitos de Deus. O trabalho, através do qual vem a prosperidade, passou a ser visto, particularmente nas obras de Calvino, como tendo caráter religioso. Acabou-se a separação entre o sagrado e o profano que subjaz ao conceito de que Deus abençoa materialmente quem lhe agrada espiritualmente. O calvinismo é, precisamente, a primeira ética cristã que deu ao trabalho um caráter religioso. Mais tarde, esse conceito foi mal compreendido por Max Weber, que traçou sua origem à doutrina da predestinação como entendida pelos puritanos do século XVIII. Weber defendeu que os calvinistas viam a prosperidade como prova da predestinação, de onde extraiu a famosa tese que o calvinismo é o pai do capitalismo. As conclusões de Weber têm sido habilmente contestadas por estudiosos capazes, que gostariam que Weber tivesse estudado as obras de Calvino e não somente os escritos dos puritanos do séc. XVIII.

Atualmente, em nosso país, a idéia de que Deus sempre abençoa materialmente aqueles que lhe agradam vem sendo levada adiante com vigor, não pelos calvinistas e reformados em geral, mas pelas igrejas evangélicas chamadas de neopentecostais, uma segunda geração do movimento pentecostal que chegou ao Brasil na década de 1900. A mensagem dos pastores, bispos e “apóstolos” desse movimento é que a prosperidade financeira e a saúde são a vontade de Deus para todo aquele que for fiel e dedicado à Igreja e que sacrificar-se para dar dízimos e ofertas. Correspondentemente, os que são infiéis nos dízimos e ofertas são amaldiçoados com quebra financeira, doenças, problemas e tormentos da parte de demônios. Na tentativa de obter esses dízimos e ofertas, os profetas da prosperidade promovem campanhas de arrecadação alimentadas por versículos bíblicos freqüentemente deslocados de seu contexto histórico e literário, prometendo prosperidade financeira aos dizimistas e ameaçando com os castigos divinos os que pouco ou nada contribuem.

O crescimento vertiginoso de igrejas neopentecostais que pregam a prosperidade só pode ser explicado pela idéia equivocada que o favor de Deus se mede e se compra pelo dinheiro, pelo gosto que os evangélicos no Brasil ainda têm por bispos e apóstolos, pela idéia nunca totalmente erradicada que pastores são mediadores entre Deus e os homens e pelo misticismo supersticioso da alma brasileira no apego a objetos considerados sagrados que podem abençoar as pessoas. Quando vejo o retorno de grandes massas ditas evangélicas às práticas medievais de usar no culto a Deus objetos ungidos e consagrados, procurando para si bispos e apóstolos, imersas em práticas supersticiosas e procurando obter prosperidade material por meio de pagamento de dízimos e ofertas me pergunto se, ao final das contas, o neopentecostalismo brasileiro e sua teologia da prosperidade não são, na verdade, filhos da Igreja medieval, uma forma de neo-catolicismo tardio que surge e cresce em nosso país onde até os evangélicos têm alma medieval.

Fonte: http://tempora-mores.blogspot.com.br