segunda-feira, 27 de agosto de 2012

DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA

HISTÓRIA DA DOUTRINA DA PROVIDÊNCIA. Com a sua doutrina da providência a igreja tomou posição contra a noção dos epicureus de que o mundo é governado pelo acaso, e contra a idéia estóica de que ele é governado pelo destino. Desde o início os teólogos assumiram a posição de que Deus preserva e governa o mundo. Contudo, nem sempre tiveram eles uma concepção igualmente absoluta do domínio divino sobre todas as coisas. Devido à estreita conexão em ambas, a história da doutrina da providência segue, no essencial, a da doutrina da predestinação. Os primeiros”pais da igreja”não apresentam idéias definidas sobre o assunto. Em oposição à doutrina estóica do destino e em seu desejo de proteger a santidade de Deus, às vezes eles exageravam na ênfase ao livre arbítrio do homem, e nesse ponto manifestavam a tendência de negar o absoluto governo providencial de Deus com relação às ações pecaminosas. Agostinho tomou a dianteira no desenvolvimento desta doutrina. Contra as doutrinas do destino e do acaso, ele dava ênfase ao fato de que todas as coisas são preservadas e governadas pela soberana, sábia e bondosa vontade de Deus, mas afirmava o domínio de Deus igualmente sobre o bem e sobre o mal que há no mundo. Com a defesa da realidade das causas secundárias, ele salvaguardava a santidade de Deus e mantinha a responsabilidade do homem.
Durante a Idade Média houve pouca controvérsia sobre o tema da providência divina. Nem um só concílio expressou-se sobre esta doutrina. O conceito predominante era o de Agostinho, que sujeitava tudo à vontade de Deus. Não significa, porém, que não havia idéias divergentes. O pelagianismo limitava a providência à vida natural, e excluía a vida ética. E os semipelagianos seguiam na mesma direção, conquanto nem todos fossem igualmente longe. Alguns dos escolásticos consideravam a conservação feita por Deus como uma continuação da Sua atividade criadora, enquanto outros faziam uma real distinção entre ambas. Em Tomaz de Aquino a doutrina da providência divina segue em geral a de Agostinho, e sustenta que a vontade de Deus, como determina pelas Suas perfeições, preserva e governa todas as coisas; ao passo que Duns Scotus e nominalistas como Biel e Occam declaravam que tudo depende da vontade arbitrária de Deus. Isso oi uma virtual introdução do governo do acaso.
Em geral os reformadores subscreveram a doutrina agostiniana da providência divina, embora diferissem um tanto nos pormenores. Conquanto Lutero cresse na providência geral, ele não dava ênfase à preservação e ao governo divino do mundo em geral, como o fazia Calvino. Ele considerava a doutrina primordialmente em seus suportes soteriológicos. Os socinianos e os arminianos, embora não no mesmo grau, limitavam a providência de Deus salientando o poder independente do homem de tomar a iniciativa na ação e, assim, controlar a sua vida. O domínio do mundo realmente foi tirado das mãos de Deus e dado às mãos do homem. Nos séculos dezoito e dezenove a providência foi virtualmente eliminada por um deísmo que descrevia Deus como tendo-se afastado do mundo após a obra da criação; e por um panteísmo que identificava Deus com o mundo, obliterava a distinção entre a criação e a providência e negava a realidade das causas secundárias. E embora o deísmo possa hoje ser considerado uma coisa do passado, seu conceito do domínio e direção do mundo tem continuidade na posição das ciências naturais, de que o mundo é dominado e dirigido por um férreo sistema de leis. E a teologia liberal moderna, com a sua concepção panteísta da imanência de Deus, também tende a eliminar a doutrina d providência divina.
2. A IDÉIA DA PROVIDÊNCIA. Pode-se definir a providência como o permanente exercício a energia divina, pelo qual o Criador preserva todas as Suas criaturas, opera em tudo que se passa no mundo e dirige todas as coisas para o seu determinado fim. Esta definição indica que há três elementos na providência, a saber, a preservação (conservatio, sustentatio), a concorrência ou cooperação (concursus, co-operatio), e o governo (gubernatio). Calvino, o Catecismo de Heidelberg e alguns dos dogmáticos mais recentes (Dabney, os Hodge, Dick, Shedd, McPherson) falam de dois elementos apenas, a saber, da preservação e do governo. Não quer dizer, porém, que eles queiram excluir o elemento da concorrência, mas somente que o consideram incluído nos outros dois, indicando a maneira pela qual Deus preserva e governa e mundo. McPherson parece pensar que só alguns dos grandes teólogos luteranos adotaram a divisão tríplice; mas nisto se engana, pois a referida divisão é muito comum nas obras dos dogmáticos holandeses desde o século dezessete (Mastricht, à Marck, De Moor, Brakel, Francken, Kuyper, Bavinck, Vos, Honig). Eles abandonaram a divisão mais antiga porque desejavam dar maior proeminência ao elemento da concorrência, para proteger-se dos perigos do deísmo e do panteísmo. Mas, conquanto distingamos três elementos na providência, devemos lembrar que estes três nunca estão separados, na obra de Deus. Embora a preservação se refira à existência, a concorrência à atividade e ao governo à direção de todas as coisas, jamais se deve entender isso num sentido exclusivo. Na preservação há também um elemento de governo, no governo um elemento de concurso, e no concurso em elemento de preservação. O panteísmo não distingue entre a criação e a providência, mas o teísmo acentua uma dupla distinção: (a) A criação é o chamamento à existência daquilo que antes não existia, enquanto que a providência continua ou faz continuar aquilo que já foi chamado à existência. (b) na criação não pode haver cooperação da criatura com o Criador, mas na providência concorrem a Causa primeira e causas secundárias. A Escritura sempre distingue ambas.
3. CONCEITOS ERRÔNEOS CONCERNENTES À NATUREZA DA PROVIDÊNCIA.
a. O erro de limita-la à presciência ou à presciência mais predestinação. Esta limitação acha-se nalguns dos primeiros “pais da Igreja”. Contudo, a verdade é que, quando falamos da providência de Deus, em geral não temos em mente nem Sua presciência nem a predestinação, mas simplesmente a Sua contínua atividade no mundo para a realização do Seu plano. Compreendemos que esta não pode separa-se do Seu decreto eterno, mas também percebemos que se pode e se deve distinguir entre ambos. Muitas vezes têm sido distinguidos como providência imanente e providência transeunte.
b. o conceito deísta da providência divina. Segundo o deísmo, o interesse de Deus pelo mundo não é universal, especial e perpétuo, mas tão somente de natureza geral. Ao tempo da criação, Ele infundiu em todas as Suas criaturas certas propriedades inalienáveis, colocou-as sob leis inalteráveis e deixou que cumprissem o seu destino pelos seus próprios poderes inerentes. Entrementes, Ele exerce apenas uma supervisão geral, não dos elementos específicos que aparecem em cena, mas das leis gerais que Ele estabeleceu. O mundo é uma simples máquina que Deus acionou, e de modo nenhum uma nave que Ele pilota dia após dia. Esta concepção deísta da providência é característica do pelagianismo, foi adotada por vários teólogos católicos romanos, foi esposada pelo socinianismo e foi apenas um dos erros fundamentais do arminianismo. Recebeu garbosas vestes filosóficas das mãos deístas do século dezoito e apareceu com novas formas no século dezenove, sob a influência da hipótese evolucionista e das ciências naturais, com sua forte ênfase à uniformidade da natureza como controlada por um inflexível sistema de leis férreas.
c. A idéia panteísta da providência divina. O panteísmo não reconhece a distinção que há entre Deus e o mundo. Ou faz absorver-se idealisticamente o mundo em Deus, ou materialisticamente Deus no mundo. Num ou noutro caso, não deixa lugar para a criação e também elimina a providência, no sentido próprio da palavra É verdade que os panteístas falam de providência, mas a sua providência, assim chamada, é simplesmente idêntica ao curso da natureza, e este não é nada mais nada menos que a auto-revelação de Deus, uma auto-revelação que não deixa lugar para a independente operação das causas secundárias, em qualquer sentido da palavra. Segundo este ponto de vista, o sobrenatural é impossível, ou melhor, o natural e o sobrenatural são idênticos, a consciência de livre autodeterminação do homem é uma ilusão, a responsabilidade moral é uma fantasia da imaginação, e a oração e o serviço religioso são supertições. A teologia sempre teve muito cuidado em guardar-se dos perigos do panteísmo, mas durante o século passado esse erro conseguiu entrincheirar-se em muita teologia liberal moderna com disfarce da doutrina da imanência de Deus.
4. OBJETOS DA PROVIDÊNCIA DIVINA.
a. Os ensinamentos da Escritura sobre este ponto. A Bíblia ensina claramente o governo providencial de Deus (1) sobre o universo em geral, Sl 103.19; Dn 5.35; Ef 1.11; (2) sobre o mundo físico, Jó 37.5; Sl 104.14; 135.6; Mt 5.45; (3) sobre a criação inferior, Sl 104.21, 28; Mt 6.26; 10.29; (4) sobre os negócios das nações, Jó 12.23; Sl 22.28; 66.7; At 17.26; (5) sobre o nascimento do homem e sua sorte na vida, 1 Sm 16.1; Sl 139. 16; Is 45.5; Gl 1.15, 16; (6) sobre as vitórias e fracassos que sobrevêm às vidas dos homens, Sl 75.6, 7; Lc 1.52; (7) sobre coisas aparentemente acidentais ou insignificantes, Pv 16.33; Mt 10.30; (8) na proteção dos justos, Sl 4.8; 5.12; 63.8; 121.3; Rm 8.23; (9) no suprimento das necessidades do povo de Deus, Gn 22.8, 14; Dt 8.3; Fp 4.19; (10) nas respostas à oração, 1 Sm 1.19; Is 20.5, 6; 2 Cr 33.13; Sl 65.2; Mt 7.7; Lc 18.7, 8; e (11) no desmascaramento e castigo dos ímpios, Sl 7.12, 13; 11.6.
b. Providência geral e especial. Geralmente os teólogos distinguem entre providência geral e especial, a primeira indicando o governo de Deus sobre o universo todo, e a última, Seu cuidado de cada parte dele em relação ao todo. Não são duas espécies de providência, mas a mesma providência exercida em duas diferentes relações. Contudo, a expressão “providência especial” pode ter uma conotação mais específica, e nalguns casos se refere ao cuidado especial de Deus por Suas criaturas racionais. Alguns falam até mesmo de uma providência muito especial (providentia especialissima), com referência aos que estão na relação especial de filiação a Deus. Providências especiais são combinações especiais feitas na ordem dos eventos, como na resposta à oração, na libertação de dificuldades, e em todos os casos em que a graça e o socorro vêm, em circunstâncias críticas.
c. negação da providência especial. Há os que estão dispostos a admitir uma providência geral, uma administração do mundo sob um sistema fixo de leis gerais, mas negam que haja também uma providência especial segundo a qual Deus se interessa pelos pormenores da história, pelos assuntos da vida humana e particularmente pelas experiências dos justos. Alguns afirmam que Deus é grande demais para interessar-se pelas coisas menores da vida, enquanto outros sustentam que Ele simplesmente não pode faze-lo, desde que as leis da natureza Lhe amarram as mãos e, daí, sorriem significativamente quando ouvem dizer que Deus responde as orações. Agora, não há necessidade de negar a ralação da providência especial com as leis uniformes da natureza constitui um problema. Ao mesmo tempo, é preciso dizer que envolve um conceito muito pobre, superficial e antibíblico de Deus afirmar que Ele se interessa nem pode interessar-se pelos pormenores da vida, não pode responder as orações, nem prestar ajuda em emergências, nem interferir miraculosamente em favor do homem. Um governante que apenas baixasse certos princípios gerais e não desse atenção a particularidades, ou um homem de negócio que não examinasse os pormenores do seu negócio, logo estaria arruinado. A Bíblia ensina que mesmo as menores minúcias da vida pertencem à ordenação de Deus. Em conexão com a questão, se podemos harmonizar a operação das leis gerais da natureza com a providência geral, só podemos indicar o seguinte: (1) As leis da natureza não devem ser descritas como poderes da natureza a governarem absolutamente todos os fenômenos e operações. Elas na verdade não são mais que a descrição humana, por vezes deficiente, da uniformidade na variedade descoberta no modo pelo qual operam as forças da natureza. (2) A concepção materialista das leis da natureza como um sistema entrelaçado e fechado, agindo independentemente de Deus e realmente O impossibilitando de intervir no curso do mundo, é absolutamente errônea. O universo tem uma base pessoal. E a uniformidade da natureza é simplesmente o método ordenado por um ser pessoal em ação. (3) As leis da natureza, assim chamadas, só produzem os mesmos efeitos se todas as condições são as mesmas. Geralmente os efeitos não são resultados de uma força única, mas de uma combinação de forças naturais. Até um homem pode variar os efeitos combinando uma força da natureza com outra ou outras forças, e entretanto cada uma destas forças opera em estrita harmonia com suas leis. E se isto é possível para o homem, é infinitamente mais possível para Deus. Com todos os tipos de combinação, Ele pode levar a efeito os mais variados resultados.
(Teologia Sistemática – Louis Berkhof)

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