sexta-feira, 27 de junho de 2014

O Emprego da Palavra de Deus Como Instrumento da Regeneração

Surge a questão sobre se a Palavra de Deus é utilizada como meio no ato de regeneração ou não; ou, como muitas vezes a questão é colocada, se a regeneração é mediata ou imediata.
1. A LEGÍTIMA IMPORTÂNCIA DA QUESTÃO. Requer-se cuidadosa discriminação, para evitar entendimento errôneo.
a. Quando os antigos teólogos reformados (calvinistas) insistiam no caráter imediato da regeneração, muitas vezes davam ao termo “imediato” uma conotação inexistente hoje. Alguns dos representantes da escola de Saumur, como Cameron e Pajon, ensinavam que, na regeneração, o Espírito ilumina e convence sobrenaturalmente a mente ou o intelecto de maneira tão poderosa, que a vontade não pode deixar de seguir os ditames dominantes do juízo prático. Ele opera imediatamente só no intelecto, e, por meio deste, age mediatamente na vontade. Segundo eles, não há nenhuma operação imediata do Espírito na vontade do homem. Em oposição a estes homens, os teólogos reformados geralmente acentuavam o fato de que, na regeneração, o Espírito opera também diretamente na vontade do homem, e não apenas por intermédio do intelecto. Hoje, a questão da regeneração mediata ou imediata é ligeiramente diversa, embora relacionada com o que acima foi exposto. Trata-se da questão do uso da Palavra de Deus como um meio, na obra da regeneração.
b. Deve-se observar cuidadosamente a forma da questão. A questão não é se Deus opera a regeneração por meio de uma palavra criadora. Admite-se geralmente que o faz. Tampouco é se Ele emprega a palavra da verdade, a palavra da pregação, para o novo nascimento, como distinta da geração divina do novo homem, isto é, para assegurar os primeiros exercícios santos da nova vida. A questão real é se Deus, ao implantar ou gerar a nova vida, emprega a palavra da Escritura ou a palavra da pregação como instrumento ou meio. No passado, a discussão desta matéria muitas vezes padeceu da falta de adequada discriminação.
2. CONSIDERAÇÕES QUE FAVORECEM UMA RESPOSTA NEGATIVA. Diz o dr. Shedd: “A influência do Espírito Santo é distinguível da influência da verdade; da do homem sobre o homem; e da de qualquer instrumento ou meio, seja qual for. Sua energia age diretamente sobre a alma humana propriamente dita. É influência de espírito sobre espírito; de uma das pessoas trinitárias sobre uma pessoa humana. Nem a verdade, nem algum outro ser humano pode operar assim, diretamente sobre a essência da alma”. As seguintes considerações dão respaldo a este conceito:
a. A regeneração é um ato criador, pelo qual o pecador espiritualmente morto é devolvido à vida. Mas a verdade do Evangelho só pode agir de maneira moral e persuasiva. Tal instrumento não tem efeito sobre os mortos. Afirmar o seu uso pareceria implicar uma negação da morte espiritual do homem; coisa que, naturalmente, não está na intenção dos que tomam esta posição.
b. A regeneração tem lugar na esfera do subconsciente, isto é, fora da esfera da atenção consciente, ao passo que a verdade se dirige à consciência do homem. Ela só pode exercer a sua influência persuasiva quando a atenção do homem está posta nela.
c. A Bíblia distingue entre a influência do Espírito Santo e a da Palavra de Deus, e declara que aquela influência é necessária para o recebimento próprio da verdade, Jo 6.64, 65; At. 16.14; 1 Co 2.12-15; Ef 1.17-20. Observe-se particularmente o caso de Lídia, de quem diz Lucas: ela “nos escutava (ekouen, imperfeito); o Senhor lhe abriu (dienoixem, aoristo, ato simples) o coração para atender (prosechein, infinito de resultado ou propósito) às cousas que Paulo dizia”.
3. PASSAGENS BÍBLICAS QUE PARECEM PROVAR O CONTRÁRIO.
a. Em Tg 1.18 lemos: “Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas”. Esta passagem não prova que a nova geração é mediada pela Palavra de Deus, pois o termo ali empregado é apokyese, que não se refere ao ato de gerar, mas, sim, ao ato de dar nascimento. Os que acreditam na regeneração imediata não negam que o novo nascimento, em que a nova vida se manifesta inicialmente, é assegurado pela Palavra.
b. Pedro exorta os crentes a se amarem uns aos outros ardentemente, em vista do fato de que eles foram “regenerados, não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente”, 1 Pe 1.23. Não é correto dizer, como alguns têm feito, que “a palavra”, neste versículo, é a palavra criadora, ou a segunda pessoa da Trindade, pois o próprio Pedro nos informa que tem em mente a palavra pregada aos destinatários da epístola, versículo 25. Mas é perfeitamente válido assinalar que mesmo gennao (vocábulo usado na citada passagem) nem sempre se refere ao gerar masculino, mas também indica o ato feminino de dar nascimento a filhos. Isto é perfeitamente evidenciado por passagens como Lc 1.13, 57; 23.29; Jo 16.21; Gl 4.24. Conseqüentemente, não há base para a asserção de que Pedro, na passagem em foco, refere-se ao ato inicial da regeneração, a saber, à geração. E se se refere à regeneração num sentido mais amplo, não oferece nenhuma dificuldade quanto à matéria aqui em consideração. A idéia de que ele se refere ao novo nascimento é favorecida pelo fato de que os destinatários da carta são apresentados como tendo nascido de novo de uma semente que evidentemente já tinha sido implantada na alma, cf. Jo 1.13. Não é necessário identificar a semente com a Palavra.
c. Às vezes a parábola do Semeador é apresentada em favor da idéia de que a regeneração se dá por meio da Palavra. Nesta parábola, a semente é a palavra do Reino. O argumento é que a vida está na semente e brota da semente. Conseqüentemente, a nova vida brota da semente da Palavra de Deus. Mas, em primeiro lugar, isto é errar o alvo, pois dificilmente significa que o Espírito ou o princípio da nova vida está encerrado na Palavra, exatamente como o germe vivo está encerrado na semente. Isto lembra um pouco a concepção luterana da vocação, segundo a qual o Espírito está na Palavra, de modo que a vocação seria sempre eficaz, se o homem não pusesse uma pedra de tropeço no caminho. E, em segundo lugar, isto é forçar um ponto que absolutamente não se acha no tertium comparationis (no terceiro elemento de comparação). O Salvador quer explicar nesta parábola como sucede que a semente da Palavra dá fruto nalguns casos, e noutros não. Só dá fruto nos casos em que ela cai em bom terreno, em corações preparados de modo tal que compreendem a verdade.
4. OS PERTINENTES ENSINOS DOS NOSSOS PADRÕES CONFESSIONAIS. É bom considerar aqui os seguintes trechos: Confissão Belga, artigos XXIV e XXXV; Catecismo de Heidelberg, perg. 54; os Cânones de Dort III e IV, artigos 11, 12, 17 e, finalmente, as Conclusões de Utrecht, adotados por nossa igreja em 1908. Nestas passagens é mais que evidente que os nossos escritos confessionais falam de regeneração num sentido amplo, incluindo tanto a origem da nova vida como a sua manifestação na conversão. É-nos dito até que a fé regenera o pecador. Há trechos que parecem dizer que a Palavra de Deus serve de instrumento na obra de regeneração. Todavia, vêm expressos em tal linguagem que permanece duvidoso se de fato ensinam que o princípio da nova vida é implantado na alma pela instrumentalidade da Palavra. Eles não discriminam cuidadosamente entre os vários elementos que distinguimos na regeneração. Nas Conclusões de Utrecht lemos: “Quanto ao terceiro ponto, o da regeneração imediata, o Sínodo declara que esta expressão pode ser usada em bom sentido, como no que as nossas igrejas sempre confessaram, contra os luteranos e a Igreja Católica Romana, que a regeneração não é efetuada por meio da Palavra ou dos Sacramentos como tais, mas, sim, pela toda-poderosa obra regeneradora do Espírito Santo; que, todavia, esta obra regeneradora do Espírito Santo não pode, nesse sentido, ser dissociada da pregação da Palavra, como se ambas fossem separadas uma da outra; pois apesar de nossa Confissão ensinar que não temos por que duvidar quanto à salvação dos nossos filhos que morrem na infância embora não tenham ouvido a pregação do Evangelho, e apesar de nossos padrões confessionais em parte alguma se expressarem sobre a maneira pela qual a regeneração é efetuada no caso destas crianças e outras – não obstante é certo, por outro lado, que o Evangelho é poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, e que, no caso dos adultos, a obra regeneradora do Espírito Santo acompanha a pregação do Evangelho”.
(Teologia Sistemática – Lois Berkhof. Pg. 474)

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